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[Resenha] O Carteiro e o Poeta


Apaixonado por literatura como sou, para mim é uma vergonha ter conhecimento tão limitado, resumido a alguns poucos poemas, das obras do poeta chileno Pablo Neruda. Talvez, por isso, tenha sido tão estranho que eu tenha decidido mergulhar de cabeça em O Carteiro e o Poeta, do também chileno Antonio Skármeta. Mas a belíssima homenagem proposta por Skármeta acaba por também ser uma indispensável obra-prima, extasiante em sua narrativa única e extremamente sensível em seus vários temas.

O Carteiro e o Poeta conta a história de Mario Jiménez, um tímido e fictício jovem nativo de um pequeno vilarejo em Ilha Negra, litoral do Chile. Ao procurar emprego, Mario se torna carteiro, e, devido ao fato de toda a população local ser iletrada, o jovem tem um único cliente: o poeta Pablo Neruda, que vive na afastada enseada. Tem início uma excêntrica amizade, que acompanha e transforma a juventude de Mario com o despertar do interesse pela poesia, o primeiro amor, as descobertas sexuais e a efervescência política que toma conta de um Chile às portas de uma revolução.

Ardiente Paciencia, no original, é, em primeiro plano, um belíssimo coming of age. O amadurecimento de Mario, contado pela perspectiva do próprio de maneira breve nas poucas páginas da short novel, não precisa, em nenhum momento, do aprofundamento longo, detalhista e metódico das narrativas tradicionais; Skármeta domina com maestria a arte de narrar, e enche cada palavra de poesia, cada página transbordando uma beleza indescritível – como somente os maiores poetas foram capazes de fazer. De tanta habilidade técnica e emocional, Skármeta quase torna palpável seu mundo cheio de cores vibrantes e sinestesia. Afinal, como seria possível homenagear um grande artista sem recorrer à própria arte que fê-lo grande? 

De fato, com sinestesia poderíamos descrever da forma mais perfeita a poesia de Neruda, de Skármeta e de Mario. Os personagens que habitam Ilha Negra têm psiques tão subjetivas e belas que jamais poderiam ser descritos senão pelo misto anárquico de sensações e sentidos; jamais poderiam se render à pura objetividade das palavras. E é por isto que O Carteiro e o Poeta não deve ser posto ao lado de qualquer outro livro: é uma obra cheia de humanidade, que, em seus jogos de palavras e linguajar complexo e astuto, consegue revirar emoções até então desconhecidas e causar identificação não com o argumento bruto, com a realidade de um jovem chileno, mas com a matéria que faz de todos nós humanos. Skármeta demonstra ser um profundo conhecedor da linguagem e de seus significados, e usa este conhecimento para tocar o mais fundo compartimento da alma de seus leitores.

E, paralelo à toda a maestria emocional, jamais sentimental, desenvolve-se um relato semibiográfico que, apesar de certamente tomar diversas liberdades quanto à sua procedência para com a realidade, consegue engendrar-se à trama principal de maneira a fazê-la crescer. O Neruda fictício de Skármeta é um mestre para Mario, ao mesmo tempo que uma figura essencial para o desenvolvimento de uma trama política que reflete a tensa situação do Chile nos poucos anos que precederam a morte do poeta e o golpe militar. Ao final, Skármeta consegue capturar o espírito jovem e revolucionário dos anos 1970, com toda a paixão, a vibração, a arte e o engajamento político que marcariam esta geração.

De uma forte e belíssima carga poética, O Carteiro e o Poeta é um grande e ambicioso coming of age, mesmo em sua curta duração. Suas metáforas reverberam como versos num poema, e sua sensibilidade marcante é responsável por um belíssimo estudo de personagens, que jamais precisa dissecá-los para compreendê-los. Pelo contrário: a linda narrativa de Skármeta é o grito eufórico daquele que se reconhece como um todo, em harmonia consigo mesmo e com os mistérios do universo.

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