[Crítica] Filho de Saul
http://siteloggado.blogspot.com/2016/02/critica-filho-de-saul.html
Filho de Saul é um filme
desconfortante. Não que isto signifique que seja um filme ruim, muito pelo
contrário. O representante da Hungria no Oscar deste ano é uma imersão única em
um tema que já foi exaustivamente abordado pelo cinema: o Holocausto. Sendo assim, o cineasta László Nemes escolhe abordar o brutal episódio sob a
perspectiva de um membro de um Sonderkommando (unidade composta por judeus que
são forçados a cremar os cadáveres dos prisioneiros executados e limpar os
restos mortais que ficam na câmara de gás).
O filme já inicia com um plano
sequência que acompanha o protagonista Saul (Géza Röhrig) em sua rotina em
Auschwitz. Nesta cena de abertura, ele conduz um grupo de prisioneiros prestes
a ser executado em direção a câmara de gás, enganados pelos seus algozes com
promessas de trabalho e salário justo; aguarda enquanto os prisioneiros são
sufocados pelo gás venenoso, ouvindo seus gritos de desespero e angústia; em
seguida, recolhe e ajunta os cadáveres. No entanto, um dos prisioneiros ainda
demonstra sinais de vida, respirando com certa dificuldade. O médico do campo é
chamado para atender ao prisioneiro, quando vemos que, na verdade, ele veio
concluir o serviço realizado pela câmera, sufocando-o até a morte. O choque é
ainda maior quando vemos que o prisioneiro em questão é um garoto.
Sensibilizado, Saul o toma como seu filho e está determinado a dar-lhe um
enterro digno.
Para alcançar seu objetivo, Saul
precisa de um rabino. No entanto, com prisioneiros chegando e sendo executados
diariamente em Auschwitz, a tarefa se revela extremamente complicada. A
situação se agrava quando, paralelamente, uma rebelião dos prisioneiros começa
a tomar forma e Saul é requisitado por seus pares a cooperar. Com isso, Saul
precisará escolher entre ajudar os vivos e dar uma última honra a um morto. Dessa
forma, o roteiro de László Nemes e Clara Royer navega no cotidiano em Auschwitz
e na dinâmica entre prisioneiros, guardas, altos oficiais das tropas alemãs de
maneira muito fluente. Além disso, é incrível notar a riqueza dos subtextos do filme.
Como, por exemplo, a figura do
próprio "filho" de Saul. Obviamente, o cadáver do menino que o protagonista
toma para si não é seu filho biológico. À medida que o filme avança, começamos
a notar que Saul tinha um filho que, por alguma razão não esclarecida pelo
roteiro, morreu e o protagonista é movido pelo remorso por conta dessa perda.
Logo, vemos que o "filho" é a concretização da chance que Saul tem de zelar
pelo filho uma última vez. Outra situação que presenciamos no filme é a cena em
que o protagonista vai até o pavilhão feminino encontrar uma prisioneira que é
figura essencial para a rebelião. Através de pequenos gestos e poucas palavras,
descobrimos que os personagens tiveram um envolvimento no passado. Detalhes
mínimos como os que vemos nessa cena são o que torna Filho de Saul um filme
excepcional. Falando em detalhes, uma das facetas louváveis do roteiro foi
habitar Auschwitz com personagens não-judeus, como homossexuais (na cena em que
Saul acompanha um colega que fotografa guardas agredindo um prisioneiro
homossexual) e ciganos (na cena em que Saul é agredido por ter perdido algo
importante para a rebelião dos prisioneiros).
Em seu primeiro longa-metragem,
László Nemes conduz Filho de Saul com desenvoltura de veterano. Ao lado do
diretor de fotografia Mátyás Erdély, o cineasta confere ao filme uma atmosfera
intimista através de decisões estéticas como a razão de aspecto 1,37:1, que
aumenta a sensação de claustrofobia no espectador; planos fechados, deixando
fora de foco o que está em segundo plano, o que faz com que muitas das
brutalidades cometidas em Auschwitz sejam mais impactantes justamente por não
ficarem evidentes. Além disso, Nemes recorre a metáforas visuais como em uma
das últimas cenas em que Saul sorri ao olhar para um garoto que timidamente
adentra seu esconderijo e depois corre para a floresta, uma cena riquíssima em
significados e que pode render produtivas discussões.
Para interpretar o personagem
principal, é necessário um ator com uma presença marcante. E Géza Röhrig
preenche o papel de Saul de maneira extraordinária e inesquecível. Veterano na
televisão e também conhecido por seu trabalho como poeta, esta é a primeira
investida de Röhrig no cinema e ele aproveita a oportunidade de forma
inigualável ao construir um protagonista de gestos mínimos e tom de voz sempre
baixo. O semblante extremamente expressivo do ator é valorizado pela construção
visual do filme, já que a câmera se mantém próxima de seu rosto na maior parte
do tempo, fazendo com que seja possível assimilar uma gama de sentimentos que
nos permitem entender a trajetória de Saul, marcada por sofrimento.
Assistindo Filho de Saul
entendemos o porquê do filme estar conquistando plateias no mundo inteiro e
ganhando prêmios por onde passa. A produção húngara merece ser vista e revista
várias vezes. Não existem adjetivos o suficiente para descrevê-lo, é preciso
que você vá ao cinema e veja por si mesmo. É uma experiência ímpar, brutal, e
memorável. O que resta agora é torcer para que Géza Röhrig continue como ator
de cinema, e que László Nemes nos presenteie com filmes tão maravilhosos quanto Filho de Saul.