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[Resenha] O Beijo da Mulher-Aranha


Existem histórias em que mergulhamos por impulso; livros e filmes encontrados por acaso que, até então desconhecidos por nós, não significam nada, mas não saem de nossa cabeça, até que, enfim, são degustados. Meu impulso com O Beijo da Mulher-Aranha data de 2007, meu primeiro contato com o livro. Na época, com meus 11 anos, o estranho título para mim nada mais era do que mais um tópico para abordar em minha pesquisa sobre a literatura argentina. De lá para cá, muitas coisas mudaram antes que eu pudesse encontrar meu exemplar amarelado esquecido num sebo. Mudaram em mim, em minha cabeça, em meu mundo. Mudaram em minha percepção de vida e de mim mesmo. Por isso, acho que este era o momento certo para que eu conferisse a obra máxima de Manuel Puig – tanto em sua importância literária quanto em seu fortíssimo, ainda que um tanto falho, discurso político.

Considerado o melhor livro de Manuel Puig, O Beijo da Mulher-Aranha, publicado em 1976, é um pungente e sensível mergulho no relacionamento de um preso político, Valentín, com seu companheiro de cela homossexual, Molina, acusado de corromper menores. O que se pode fazer na solidão de uma cela que fede (um deles está com os intestinos soltos), senão conversar o tempo inteiro? Falar da vida, da realidade, das coisas que aconteceram aos personagens. E quando não há vida, ou ela é brutal demais, é necessário reinventá-la... E, de repente, do meio da imundície daquela cela, da solidão de dois homens diferentes, mas ligados pelo que têm de humano, ambos vítimas da mesma violência de um regime, surge um quadro terrível de um sistema político social.

Um clássico não apenas argentino, mas latino americano de forma geral, O Beijo da Mulher-Aranha é um livro que se equilibra com louvor na tênue linha entre o convencional e o inconvencional. Seu desenvolvimento, enquanto trama bruta, é ordinário e extremamente comum; são a forma e os mecanismos narrativos que justificam tamanho renome. O que pode chamar a atenção do leitor desavisado, numa breve folheada, é o fato de que não há, em momento algum ao longo das 250 páginas, uma única linha de narrativa indireta em O Beijo. E, ainda assim, Puig se sustenta entre diálogos diretos, fluxo de consciência e várias outras técnicas narrativas para construir uma história milimetricamente planejada, a fim de explorar o poder da literatura de maneiras raramente vistas antes. É quase como se Puig quisesse se ausentar completamente das páginas de sua própria obra, deixando que os personagens falassem por si só.

E, ainda assim, é notável o tanto que há do próprio autor transcrito em cada página. Em um belo texto, que inclusive acabou publicado na contracapa da famosa edição de 1981 pela editora Codecri, Ignácio de Loyola Brandão comenta que “até pareceu que o livro não era traduzido, tinha sido escrito por um brasileiro, tão reconhecíveis eram os fatos, tão iguais, naquela monotonia criadora que caracteriza os regimes totalitários, quando se trata de oprimir”. De fato, em O Beijo, Puig compõe uma obra política poderosa e necessária para desconstruir muitos preceitos de uma sociedade conservadora e moralista.

Seu objetivo político principal – que, nas palavras do autor, era “construir um retrato objetivo da homossexualidade” – é trôpego, por apresentar uma visão problemática de um personagem gay, além de, como tantas obras predecessoras, confundir sexualidade e gênero (apesar de, admitamos, a discussão dentro da comunidade LGBT nas décadas de 1970 e 1980 diferir muito da atual); a inserção de estudos psicológicos em notas de rodapé também adiciona pouquíssimo à trama, sendo desinteressante e desnecessária. Mas, se nisto tropeça, O Beijo se recupera ao tratar de humanizar uma dupla de “subversivos”, párias sociais dentro de uma ditadura violenta. Molina e Valentín não são meros clichês de seus respectivos nichos – apesar do retrato do segundo ter mais sucesso que o do primeiro; a construção multidimensional de ambos é a força motora de uma sensibilidade sincera e um tanto pessimista que permeia toda a obra. Os filmes de Molina – um mecanismo narrativo recorrente –, ainda que tornem a narrativa um pouco repetitiva durante a primeira metade, constituem importantes metáforas para o entendimento de ambas as psiques. Melodramas baratos, B-movies apolitizados ou então extremamente problemáticos para Valentín, longas que descrevem o pulsar psicológico de cada um dos personagens, e fazem emergir as ansiedades que apenas o isolamento e a desesperança são capazes de escavar. Dois homens que, presos fisicamente por um regime que os contraria, se descobrem também presos pelas expectativas de si mesmos.

Imperfeito, mas impactante, O Beijo da Mulher-Aranha é um retrato poderoso não só de um regime totalitário, mas de um sistema conservador que constantemente renega suas vítimas. Um belíssimo drama psicológico, a obra de Puig tem tamanho vigor e frescor que é capaz de reverberar até hoje, com uma simplicidade única e comovente. Como o leitor rapidamente descobrirá, respirar levemente não é uma opção e, assim como Molina com seus filmes, é impossível não mergulhar de cabeça nesta curiosa história.

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