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[Resenha] Mutações


Poucas atrizes foram tão longe e, ainda assim, se mantiveram tão silenciosas quanto Liv Ullmann. A norueguesa, dona de uma das faces mais intrigantes do cinema – e dos olhos mais tristes –, marcou para sempre a história da sétima arte em colaboração com o mestre sueco Ingmar Bergman, com quem manteve uma intensa relação de romance e amizade. Em sua primeira autobiografia, Mutações, Ullmann desvenda detalhes de sua infância e juventude, de seu amadurecimento e de sua vida como artista – e revela um lado extremamente poético e agridoce de uma mulher cheia de inseguranças e receios.

Com grande elegância, Ullmann demonstra habilidade em compor suas palavras não apenas num mero desabafo, mas numa narrativa ternamente emocional e desconcertantemente humana. Com um olhar simultaneamente crítico e delicado, a atriz se desconstrói diante de seu público – desta vez não num palco, ou numa tela branca a vinte e quatro quadros por segundo, mas nas páginas de um livro. Semelhantemente a um diário em que as cenas se desenrolam num ritmo nostálgico, como uma teia de lembranças, ao final, mergulhamos tão profundamente em sua psique que nos sentimos íntimos o suficiente para chamá-la pelo primeiro nome, ainda que a admiremos a distância, talvez, com nossa própria parcela de medo por testemunhar um relato tão sensível e doloroso.

Liv se revela frágil, assustada, amorosa, amargurada, solitária e docemente melancólica, despejando sobre nós suas ansiedades mais profundas. Uma mulher que se esconde de medo e veste uma máscara para enfrentar o cotidiano do estrelato, e, ao mesmo tempo, é capaz de escrever uma belíssima carta para sua filha, que serve como um comovente epílogo para sua narração. Uma mulher forte e culta, mas refém de uma solidão opressora que lhe envolve a garganta, sufocando-a em tudo o que faz; uma insegurança inerente a cada passo, a casa ato. Liv investiga cada uma de suas mutações, decompondo-as e expondo-as para nós, ainda vivas e pulsantes, num passado muito vívido e muito claro, marcado a ferro em seu espírito, responsável por construir a mulher que é e que até então fora, em constante transformação.

De fato, é impressionante como a norueguesa conduz seu leitor numa narrativa que, apesar de pautada em fatos reais, obedece a uma estrutura ambiciosa e desafiadora em sua não-linearidade. A começar em sua primeira parte, Noruega, construída em cima de idas e voltas em juventude, languidamente inocente, ao presente amadurecido, de longos desencantos voltados para o mesmo receio que nutrira por toda sua vida versus breves momentos de realização pessoal e profissional, em que floresce um prazer narcisista em receber a aprovação externa, mas, sobretudo, em se encontrar diante de um texto, uma música, um palco: uma tranquilidade atingida com esforço no meio do turbilhão incontrolável. A seguir, em Ilhéus, sua épica história com Bergman – o gênio agressivo do cineasta, o isolamento perpétuo entre si e o constante sentimento de estarem fadados ao fracasso, em alguns trechos retratados integralmente no documentário Liv & Ingmar. Em Brilha, Brilha, Estrelinha, seu sucesso em Hollywood, e, por fim, em Máscaras, a confecção de um de seus mais importantes filmes.

Em sua divisão em apenas quatro grandes capítulos, Mutações encerra uma estrutura que preza sobretudo por uma evolução narrativa, uma convergência na qual mesmo o mais breve relato será importante para o panorama final que Ullmann busca construir. Por isso, não é de se estranhar que, numa espécie de clímax, ela recorra a narrar o período de gravações de Face a Face, naquela que, provavelmente, é a maior de suas performances no cinema, num roteiro que de tantas maneiras dialoga com seus próprios medos e anseios. Escrita especificamente para ser interpretada por Ullmann, sua Jenny acaba por se tornar um reflexo de suas próprias ansiedades pós-modernas, que Bergman entendia tão bem – o medo da morte, a velhice que se espreita, as máscaras trajadas cotidianamente para disfarçar a angústia diária. Cada um de seus personagens – não somente Jenny, mas também a Marianne de Cenas de Um Casamento e a Kristina de Os Emigrantes – é importante para que adentremos e compreendamos seu psicológico, sua identidade, cada uma de suas mutações, e, por fim, o exercício de completa e minuciosa entrega emocional que é ser atriz.

Com uma ironia cortante, amarga e poética, mais que uma biografia, Mutações é um relato lírico sobre uma mulher sempre privilegiada em talento e oportunidades, mas acometida por um pavor que extravasa seus extremos e não cabe dentro de sua pequinês feminina num mundo cruel para a fragilidade e inóspito para mulheres. Misterioso, simples, impactante e inesquecível, Mutações é um exemplo de sofisticação e comoção que passam longe da pieguice – e, ao final, sobrevive subcutâneo em nós.

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