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[Resenha] Morte Súbita


Dificilmente encontraremos alguém que declare ter Morte Súbita como livro favorito. Com sua estreia na literatura adulta, J. K. Rowling dividiu seu público - até então legionário - e levantou sobrancelhas quanto a seu futuro como escritora após o fim de Harry Potter. Era esta recepção mista que eu tinha em mente quando, quase três anos após a hype, decidi, enfim, abrir meu exemplar. Para minha surpresa, o que encontrei foi uma obra belíssima, madura e extremamente necessária, ainda que não tenha a força para se tornar um clássico.

Morte Súbita conta a história de Pagford e seus habitantes, que, após a morte inesperada de Barry Fairbrother, membro da Câmara do vilarejo, entra em choque. Pagford é, aparentemente, uma pacata cidade inglesa com tudo o que pode haver de mais comum e organizado, mas o que está por trás da bonita fachada é uma cidade em guerra - uma guerra de classes, credos, gerações e interesses. Ricos em guerra com pobres, adolescentes em guerra com seus pais, esposas em guerra com seus maridos, professores em guerra com seus pupilos - Pagford não é o que parece ser. O assento vazio deixado por Barry no conselho municipal logo se torna o catalisador para a maior guerra que a cidade já viu. Quem triunfará em uma eleição repleta de duplicidade, paixão e revelações inesperadas?

O objetivo de Morte Súbita é óbvio desde o princípio: construir um retrato da classe média como um todo a partir da análise de um ambiente micro e muitíssimo pontual - não muito diferente de vários de seus predecessores e similares. E, de fato, em termos de trama bruta, não há nada de especial que destaque The Casual Vacancy (título em sua língua original): Rowling trabalha através de fórmulas e de personagens familiares, já vistos em livros e filmes, como Beleza Americana - talvez, o exemplo mais próximo de Vacancy. Porém, partindo desta mesma comparação, tenhamos em mente as claras divergências de possibilidades entre um filme de duas horas e um livro de quinhentas páginas: enquanto Beleza Americana analisa um grupo bastante restrito de apenas duas famílias (e isto de forma alguma é uma crítica, uma vez que o filme de Sam Mendes é um dos meus favoritos), Morte Súbita estende seus braços a mais de trinta personagens diferentes, ainda que os pontos de vista sejam também limitados a alguns poucos protagonistas. 

Portanto, é a ambição que guia a obra de Rowling, bem como seu riquíssimo discurso político. A luta de classes que permeia a trama central do livro, bem como as impressões dos vários personagens sobre o assunto, serve para ilustrar todos os privilégios daqueles que nascem no berço burguês - e, nisto, Rowling tem sucesso em fazer uma análise profunda e detalhista das ansiedades e dos tabus da classe média. Com uma intensa imersão psicológica em pequenos atos e tiques, Morte Súbita desenvolve seus personagens, primários ou não, com uma habilidade delicada e magistral, e, ao fim, tornamo-nos íntimos de seus conflitos, compreendendo-os até nos pontos mais obscuros; mesmo os personagens mais antipáticos ganham um rico desenvolvimento, uma vez que Rowling não se demonstra interessada numa narrativa de todo parcial. Por isso, cada mínimo ponto - a crise de meia idade de Samantha, o tédio de Bola, a revolta de Andrew, o medo de Colin, a repressão de Sukvindher, o sexismo institucionalizado em Gavin, a xenofobia contra os Sikh, entre tantos outros - é absolutamente necessário para compor um quadro extenso dos clichês de nossa sociedade, cada um abordado com tanta alma e vigor que jamais se dá ao luxo de ser meramente genérico. E o mais impressionante é que cada uma dessas histórias se entrelaça de maneira visceral, uma impactando a outra de maneira frequentemente imprevisível, demonstrando, mais uma vez, a habilidade única de J. K. Rowling para planejar histórias, já amplamente explorada ao longo dos sete livros perfeitamente inter-relacionados da saga Harry Potter.

Tudo isto desemboca num clímax poderoso, em perfeita harmonia entre os diversos personagens, até mesmo os mais irrelevantes, entregando uma belíssima mensagem final sobre responsabilidade social. Porém, é neste clímax, também, que as falhas de Morte Súbita se tornam mais evidentes. A narrativa detalhista pode por vezes parecer lenta, e, por isso, soar indigesta e pesada, exigindo um bom tempo de descanso entre os capítulos; isto fica claro nas duas últimas partes, que, mais movimentadas, aparentam destoar do desenvolvimento calmo de até então. Similarmente, o epílogo oferece conclusões apressadas e muito simples, às vezes pecando na questão da verossimilhança. É difícil de acreditar, por exemplo, nos fins de Sukvindher, subitamente curada de sua ansiedade, ou de Samantha, que, num passe de mágica, deixa para trás toda sua arrogância e egoísmo; de Colin, cujo violento TOC parece recuar convenientemente diante do maior conflito; de Gaia, cuja reconciliação com a mãe não convence; dos vilões, subitamente castigados por uma força maior onipresente e vingativa; e de tantos outros personagens, além do desenvolvimento político que, ainda com todas as particularidades britânicas, soa inocente e superficial mesmo deste lado do Oceano Atlântico. Mesmo com todo o esforço por uma abordagem profunda e pessoal, Rowling parece incapaz de superar suas próprias fórmulas, concluindo sua obra com uma previsibilidade até então evitada com ardor.

Ao final, Morte Súbita não é uma sátira ácida, nem mesmo uma das mais inspiradas já feitas, mas Rowling se demonstra tão disposta a mergulhar e dissecar a psique de seus personagens que é impossível não se encantar. A empreitada da autora é surpreendentemente prazerosa, ainda que o peso da narração afete o ato da leitura. Guilty pleasure, talvez, mas sem tanta culpa assim.

The Casual Vacancy 6112001496187606166

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