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[Falando Sobre...] A Doce Vida


Levar filmes que marcaram época para o lugar a que sempre pertenceram: o cinema. A ideia pode não ser novidade – já há algum tempo, a rede Cinemark tem feito programações mensais para relançar clássicos favoritos dos espectadores –, mas é sempre bem-vinda. Quem não gostaria de apreciar numa sala escura uma obra-prima de Bergman (que quem acompanha meus textos sabe que é uma espécie de cineasta-fetiche para mim)? O LoGGado está sempre presente em alguns dos mais importantes eventos culturais em diversas cidades do país, e, desta vez, não poderia ser diferente: conferimos o relançamento de A Doce Vida, uma das obras-máximas de Federico Fellini, numa grande sala do Espaço Itaú de Cinema de Botafogo, na Zona Sul do Rio de Janeiro. O resultado? A degustação de um marco cinematográfico em sua mais pura essência.

Antes de começarmos, digo que esta não é uma crítica comum. Não vejo sentido em comentar um filme lançado originalmente há mais de cinquenta anos, e, de qualquer forma, confesso que me sentiria inseguro, mesmo que só reservasse elogios a este grande feito de Fellini. Desta vez, não quero falar apenas do filme. Quero falar da experiência.

Flashback. Alguns meses atrás. Imagine um estudante de Comunicação Social, sentado na primeira fileira, atento à aula de Teoria II. A professora, uma renomada comunicóloga, há semanas trata de livros de Foucault e da construção do discurso. Eis que surge um conceito: a noção de dispositivo do cinema. Trata-se, em minha caracterização absolutamente leiga, do conjunto que torna o cinema no que ele é. É a atmosfera da sala escura; é a luz que vem de trás, projetando as imagens da película de forma ampliada numa única tela; é a sensação de isolamento, o foco voltado para as imagens, em detrimento de todas as pessoas ao redor; entre outras coisas.

Quinta-feira. 6 de agosto de 2015. O estudante vai ao cinema; está ansioso para conhecer um clássico do cinema. Por uma mania estranha, ele gosta de acompanhar a filmografia de determinados cineastas na exata ordem cronológica que seus filmes foram lançados, e, para Fellini, gostaria de reservar uma atenção especial. Para isso, precisaria de tempo, e, portanto, jamais vira um filme do mestre italiano. Sabia apenas de Fellini como lenda, e, por isso, estava tão empolgado em poder conhecê-lo. Ao mesmo tempo, receava: era ainda cedo de manhã, o cinema ficava muito longe de casa e aquela noite fora especialmente mal dormida. O estudante temia não conseguir aguentar aquele visionário filme ao longo de três horas; temia estar desperdiçando uma oportunidade devido a seu relógio biológico desregulado.

Quando chega ao cinema, levemente atrasado, o estudante encontra a imensa sala quase vazia: dos cinco espectadores, é o mais jovem, e certamente o mais leigo. Consegue escolher um lugar de sua preferência, e puxa seu caderno de anotações. A sala escurece, o filme começa. As primeiras imagens começam a aparecer na tela. É então que o estudante sonolento abandona os últimos sinais de cansaço e, não pela primeira vez, é atropelado pela magia da sala escura, da luz que vem detrás e do total isolamento em que se encontra, estivesse a sala vazia ou não. O estudante sente ao máximo o significado de dispositivo de cinema.

O filme ajuda, é claro: nas primorosas e meticulosas mãos de Fellini, não há um quadro que não seja cheio de uma energia assombrosa. Absolutamente todos os planos são belíssimos, indispensáveis; não há um segundo sequer que possa ser cortado de seus longos (e, para os céticos, lentos) 174 minutos. A decisão por filmar num formato aberto, trabalhando não apenas os personagens, mas a misé-en-scène em si, contribuiu para tal beleza, assim como a vibrante fotografia em preto e branco e o premiado figurino. O roteiro, ácido e fortíssimo, consegue, com maestria, capturar o panorama de transformações e acontecimentos de 1959, um ano movimentado inserido num período intenso, às portas de diversas revoluções e conflitos.

A ansiedade da classe média abastada italiana é continuamente dissecada: a histeria burguesa, fria e impessoal, ao longo de vários segmentos, cada qual com uma mensagem única e importantíssima para a teia de críticas construída por Fellini; a vivacidade da personagem de Anita Ekberg, imortalizada como a única a ser genuína naquele mundo de ambições e frivolidades; as grandes festas, cheias de grandes atos de grandes pessoas cheias de grandes vazios; a união através dos sorrisos cansados e das fortes emoções, dos sonhos afundados num mundo em que os limites não existem. A Doce Vida é inegável e invariavelmente uma obra-prima que deve ser vista e revista, apreciada quadro a quadro, com o retumbar da belíssima trilha sonora em nossos ouvidos, obrigando-nos a mergulhar inteiramente nos tons monocromáticos de sua fotografia e afogar-nos em sua macabra dança de poder, glamour e desesperança.

Uma experiência única e intensa, possibilitada pelo Espaço Itaú de Cinema, que, salvo alguns erros de digitação na legenda, executa maravilhosamente sua proposta, e por Fellini, um dos poucos cineastas a alcançarem tamanha poesia em meio a tanto realismo, a reexibição de A Doce Vida é indispensável para qualquer um que nutra o mais mínimo sentimento que seja pela sétima arte. Quem dera pudéssemos ver todos os filmes numa sala escura; com um poder inigualável, a magia do cinema vista no cinema suspende o mundo real e até mesmo nossas limitações humanas para nos entregar o ápice das emoções – uma força de sensações viscerais.
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