loggado
Carregando...

[Crítica] Que Horas Ela Volta?


O cinema nacional é um dos melhores e mais diversos do mundo. Digo isso sem culpa e com total confiança. Só este ano, escrevi aqui sobre A História da Eternidade, Branco Sai, Preto Fica e Permanência, e, dos mais de quinze filmes nacionais lançados comercialmente que conferi em 2015, poucos são comparáveis ou similares de alguma forma. É difícil encontrar algum país que tenha um cinema tão rico quanto o nosso, e, infelizmente, também é difícil encontrar reconhecimento entre o público brasileiro.

É por isto que, de maneira pessimista, talvez, pergunto: será que, sem o alarde internacional, haveria tanta atenção voltada para Que Horas Ela Volta? Será que – pela primeira vez em muito tempo –, eu entraria numa sala cheia, quase sem lugares vagos, no meio da tarde, para ver um filme nosso? É verdade que precisamos de prêmios no exterior e um significativo lobby para o Oscar para reconhecer nosso cinema como ele é: imenso em emoção e delicadeza à sua própria maneira? De uma sensibilidade inexplicável, à flor da pele desde o primeiríssimo plano, Que Horas Ela Volta? trabalha com simplicidade e leveza um texto intenso que facilmente magoa seu espectador – em especial, por fazê-lo lembrar de uma realidade tão próxima e, ainda assim, tão invisível.

Em Que Horas Ela Volta?, a pernambucana Val (Regina Casé) se mudou para São Paulo a fim de dar melhores condições de vida para sua filha Jéssica. Com muito receio, ela deixou a menina no interior de Pernambuco para ser babá de Fabinho, morando integralmente na casa de seus patrões. Treze anos depois, quando o menino (Michel Joelsas) vai prestar vestibular, Jéssica (Camila Márdila) lhe telefona pedindo ajuda para ir a São Paulo no intuito de prestar a mesma prova. Os chefes de Val recebem a menina de braços abertos, só que, quando ela deixa de seguir certo protocolo, circulando livremente, como não deveria, a situação se complica.

Uma espécie de irmão mais doce de Casa Grande, o longa de Anna Muylaert se destaca pela extrema sutileza com que entrega sua mensagem dura e áspera. Enquanto Casa Grande faz críticas ácidas, ferrenhas e muito pontais sobre discussões extremamente atuais, Que Horas Ela Volta? estabelece uma narrativa atemporal e quase universal ao mostrar o outro lado da realidade social do país, tão nua, crua e cruel quanto no filme de Fellipe Gamarano Barbosa. E, apesar de também imprimir em sua obra uma forte carga contestatória, Muylaert compõe um filme muito mais triste e introspectivo.

Os planos longos e belíssimos de Muylaert desenham uma protagonista simples, ingênua, solitária e tristonha, vivendo numa espécie de limbo social que tantas vezes passa batido por nós. A direção de fotografia agradável e minuciosa de Barbara Alvarez consegue capturar com maestria não apenas a constante distância entre o mundo de Val e o de seus patrões, como também expõe o grau de contemplação necessário para tecer a sensibilidade do longa. Aliás, tamanha sensibilidade não seria possível sem um roteiro afiado; assim como sua beleza visual, o argumento é bastante simples, e até mesmo formulático, partindo de uma proposta comum, mas jamais decaindo ao ponto de ser genérico. Suas cenas são sempre marcadas com uma intensidade subcutânea, uma sutileza bela e excruciante, capaz de deixar seu espectador extremamente desconfortável com a tensão perene dos conflitos não verbalizados. Ou seja: este é um filme que sabe dar uma surra em silêncio.

É claro que o resultado final não seria o mesmo sem o elenco acertado e extremamente talentoso. Regina Casé entrega uma das performances mais espetaculares do ano, relembrando o quão excelente como atriz consegue ser diante dos papéis certos. Similarmente, todo o elenco de apoio mantém uma naturalidade absurda, com destaque para Karine Teles, no papel da odiosa Barbara, e, em especial, Camila Márdila e sua vigorosa Jéssica. Todos compõem personagens e relações multidimensionais, que, ao final, são a alma do filme; são suas histórias, suas psiques, seus conflitos que movem Que Horas Ela Volta? e transformam o longa numa dramédia tão poderosa e tão suave em que os tons cômicos se entrelaçam tão perfeitamente ao drama que o sucesso de um seria inimaginável sem o outro.

Ainda que um twist ao final ponha em cheque parte do caminho percorrido pelo ótimo texto, Que Horas Ela Volta? tem sucesso absoluto em entregar não apenas uma reflexão belíssima sobre a desigualdade social brasileira, mas também sobre família e relações maternais. Ainda que não figure entre os melhores filmes nacionais do ano, seu lugar dentre os mais sensíveis exemplares cinematográficos de 2015 é inegável, e é impossível sair da sessão sem que seu coração se aqueça. Nem que seja só um pouquinho.

Que Horas Ela Volta? 7267274322137598000

Postar um comentário Comentários Disqus

Página inicial item