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[Resenha] Carrie, A Estranha

Um início magistral para a brilhante carreira de Stephen King.


Um início magistral para a brilhante carreira de Stephen King.

Carrie: A Estranha é um livro, sem dúvidas, diferente. Para nós, em pleno 2013, talvez nem tanto, mas imagine em 1974: um pequeno professor, que escrevia contos para pagar as dívidas, decide pegar duas de suas memórias mais tristes e transformá-las num livro chocante que, tirando o elemento sobrenatural, é um retrato do que acontece todos os dias em todos os cantos do mundo. Na introdução do livro, King afirma que teve a primeira ideia do que mais tarde viria a ser Carrie baseada em duas meninas de sua juventude: uma criança que ia à escola todos os dias com a mesma roupa, e que passou a ser ridicularizada no dia em que comprou uma roupa nova; e numa adolescente que vivia numa casa extremamente religiosa, e que por isso era uma excluída. Segundo King, nenhuma das duas estava viva para ver Carrie ser lançado: a primeira se suicidou e a segunda sofreu um ataque epiléptico. E, a partir dessas duas meninas, surgiu Carrie: a excluída; a esquisita; a que sofria nas mãos de todos; a que só queria ser normal; a que só queria ser deixada em paz; a estranha.

Era um passo e tanto para King; ele, que só escrevera pequenos e rápidos contos para manter a família, agora tinha a ambição de fazer um romance completo. Desistiu algumas vezes, seguiu em frente. Não conseguia acreditar que alguém iria querer ler a história de uma garota excluída, sem o menor glamour das típicas adolescentes, que adquirira poderes depois de sua primeira menstruação. Seguiu em frente. Hoje, temos um dos maiores clássicos da literatura de terror e também do cinema. Um livro que, segundo o próprio King, ainda tem o poder surpreendente de machucar e horrorizar.

Carrie não segue uma narrativa tradicional: num estilo epistolar (isto é, contado a partir de outras obras, como cartas, depoimentos, livros ficcionais, etc), mesclado à narração não-linear, o livro acompanha a jovem Carrie White às vésperas de sua formatura, quando tem a primeira menstruação no vestiário, na frente de todos, e inocentemente acha que está sofrendo de hemorragia. A partir da vergonha e da gozação das colegas de turma (que chegam a agredi-la fisicamente), Carrie começa a descobrir que tem poderes telecinéticos. Com o baile se aproximando, Carrie é surpreendentemente convidada por Tommy, o garoto de seus sonhos (numa manobra organizada por Sue Irving, uma das garotas envolvidas no episódio do vestiário, querendo se desculpar). Mal sabe ela que Chris Hargensen, uma garota popular que ficou de castigo por caçoar de Carrie, planeja transformar a formatura no seu pior pesadelo - com consequências desastrosas para toda a cidade.

O livro se passa anos depois da narrativa principal; isso é perceptível por que, apesar de todo os acontecimentos desde o acontecimento no vestiário até os eventos da noite da formatura acontecerem por volta de 1979, as cartas e os depoimentos que compõem o livro datam de vários momentos da década de 1980. E, com isso, desde o início, podemos ter uma ideia da catástrofe que Carrie causou. Desde as primeiras páginas, o leitor sabe, a partir dos depoimentos dos sobreviventes, do massacre conduzido por Carrie. Volta e meia, a narrativa é pausada justamente para comportar essas cartas e depoimentos, que controem a identidade da garota - algumas vezes, mostrando algo que aconteceu na infância, ou então introduzindo a ideia de que a telecinese está diretamente relacionada aos genes. Nenhum desses quase-flashbacks são infundados; cada um é um novo soco no estômago, mostrando a dolorosa jornada de Carrie desde o início de sua vida.

E, de fato, com toda a sua profundidade e sensibilidade, Carrie é um livro chocante. Seu estilo permite mostrar vários pontos de vista de um mesmo evento, mostrando o horror de várias maneiras diferentes. É impossível permanecer impassível diante de tudo: a violência que Carrie sofre; suas esperanças sendo destruídas; o abuso de sua mãe. Stephen King detalha cada momento absurdo de modo que nos comove, nos enoja e por fim nos deixa pensando como é que um ser humano conseguiria aguentar tudo isso. Eu, particularmente, não me esqueço de uma cena, logo no início da obra, em que Carrie tinha apenas quatro anos: a narradora do depoimento frisa como ela era linda, antes de sua mãe violentá-la e destruir sua imagem. Como era linda e inocente. Mesmo com o perfeito desenvolvimento de Carrie, King não se contenta: ele cria personagens secundários e aprofunda os mesmos, desconstruindo uma juventude capenga, cheia de clichês. A mocinha perfeita, a patricinha popular, todos angustiados presos em seus esteriótipos.

E, por fim, toda a dor que perseguiu Carrie por toda sua vida culmina num clímax devastador. Sua vingança é destruidora, e irreparável. Mesmo depois de tanto ódio e tanta angústia, King choca, de verdade, e nos faz refletir sobre os pequenos atos de nosso dia a dia. Carrie nos mostra aonde o fanatismo nos leva: o fanatismo por se enquadrar socialmente; o fanatismo por manter o status quo; o fanatismo religioso. E toca em feridas que, mesmo que tentemos esconder sob curativos, continuam abertas e sangrentas.

Com o remake chegando esta semana, é impossível não falar também do filme de Brian De Palma, lançado em 1976. Acho que todos os leitores concordam que a adaptação de De Palma é indubtavel e extremamente superficial comparada ao livro - e, ainda assim, é um dos filmes mais assombrosos e assustadores, justamente por ser tão palpável e, em alguns momentos, tão real. De Palma trata de questões frágeis com uma sensibilidade semelhante à de King. Pode até ser que o filme tenha cortado grande parte dos momentos mais chocantes e comoventes do livro, e torna alguns outros muito mais simples; e, se mesmo enfraquecido o filme consegue ser tão horrorizante, imagine a obra original (que, aliás, tem um final bem mais furioso e devastador).

Carrie é, sem dúvidas, uma das narrativas de terror mais amedrontadoras de todos os tempos, e um favorito meu. Ainda hoje, quando pego o livro de minha estante e o abro em uma página qualquer, sinto o estômago embrulhar com a densidade de cada cena, que não precisa ser necessariamente sangrenta para causar repulsa. Introspectivo, impactante e profundamente emocional, King, mais uma vez, prova que é o rei, entendendo que o terror é, acima de tudo, um gênero de sentimentos e caos. E pensar que, se não fosse pela tragédia, aquela seria a noite mais feliz da vida de Carrie...


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