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[Crítica] Círculo de Fogo

Entre a ode e a diversão.

Entre a ode e a diversão.

Na infância a mais saudosa das lembranças vem de quando pensamos nas nossas antigas invencionices. Uma caixa de sapato que voava como um ônibus espacial, um amontoado de bonecos enfrentando um gigantesco gato de estimação ou mesmo o assento de motorista que virava a cabine de comando de um megazord. Crescer nos anos 80 e 90 fez da juventude de muitos, uma experiência imensurável de aventuras vividas na frente da TV com os conhecidos seriados japoneses (Jaspion, Changeman, Ultraman) ou também os americanos (Power Rangers) e desse mesmo prazer o cultuado cineasta mexicano Guillermo Del Toro também compartilhou. Círculo de Fogo, filme que chega este final de semana aos cinemas brasileiros, é uma declaração de amor a toda esta inventividade, tendo Del Toro como o apaixonado de plantão, num conto recheado de uma pieguice nerd que felizmente não ofende os mais desavisados por se ater no que a maioria dos blockbusters de verão vem pecando: divertir com conteúdo.

Partindo de uma premissa simples, somos colocados em meio a uma invasão alienígena de outra dimensão, onde os chamados Kaijus (monstros gigantes) atravessam por uma fenda do pacífico devastando cidades costeiras por todo o mundo. Com todas as suas defesas esmagadas, as nações do globo terrestre se unem para patrocinar um ambicioso plano para pôr um fim definitivo à existência das criaturas. Nasce o projeto Jaeger, robôs titânicos controlados simultaneamente por dois pilotos cujas mentes se conectam por uma ponte neural, já que as toneladas de metal da arma de guerra são esmagadoras para um só combatente. Em pouco tempo os pilotos se tornam heróis mundiais (o coletivo do filme vai além das abordagens ufanistas das produções de Michael Bay) e a Terra vai se adaptando a sua nova realidade, até que o poderio dos Kaijus e a frequência dos seus ataques põe em xeque o sucesso do programa, levando seu principal chefe, o Marechal Stacker Pentecost (Idris Elba) a elaborar uma última medida de contenção.

Del Toro reverte o argumento de Travis Beacham, que já tinha demonstrado um amor por monstros ao roteirizar o fraco remake Fúria de Titãs, numa homenagem voltada totalmente ao gênero tokusatsu eternizado pelo Godzilla de Ishirō Honda. Felizmente, o que poderia virar um mero amontoado de referências, dá lugar a um universo tão empolgante e curioso, que é impossível não sair da sessão querendo saber mais sobre tudo aquilo. O senso de unidade e minucia que permeia todo o filme é a característica mais marcante do cinema de Del Toro e justamente o que torna Círculo de Fogo tão interessante. Quando o design de produção de Carol Spier e Andrew Neskoromny tem o cuidado de não tornar o futuro do longa em algo inverossímil (afinal estamos falando de uma sociedade devastada por ataques mensais e incessantes), fica bem mais fácil se conectar ou ficar impressionado com tudo o que é exposto. Assim, o mercado negro de Hong Kong que contabiliza uma nova forma de comércio em cima dos próprios Kaijus, ao passo que se faz vizinho de uma igreja surgida após os ataques ou mesmo a base mantida pelo Marechal Pentecost e conhecida como shatterdome (a semelhança com o centro de controle da Nerv do anime Neon Genesis Evangelion é mais uma bem vinda referência), tornam-se ricas em detalhes que fogem aos olhos e lhe incitam a visitar o filme mais uma vez.

Como companheiro de longa data do diretor, Guillermo Navarro continua dando um show na direção de fotografia, basta notar que mesmo à noite, em nenhum momento a visão dos Kaijus é ofuscada, e quando as batalhas mais impressionantes tomam conta da tela, a vida noturna e néon de Hong Kong se contrapõem às luminosas listras dos monstros e a opacidade danificada da lataria dos Jaegers, criando uma vivacidade de encher os olhos e elevar nossas expectativas a diversos extremos. Desta forma temos de abrir um espaço para comentar (e elogiar) as duas forças motrizes do filme. Sem a personalidade que Del Toro imprime aos seus Jaegers e Kaijus, muito da presença esperada seria perdida. Do Jaeger “soviético” com couraça de tanque ao malabarista robô australiano, é impossível não se pegar penalizado com a perda de um braço ou perna dos gigantes, da mesma forma que um simiesco Kaiju assusta tanto quanto o reptiliano monstro que esguicha ácido pelas ruas da cidade parecendo ter saído diretamente de um conto do Lovecraft (a inspiração mais usual do diretor). 

No contraponto humano, os arquétipos que mais uma vez reforçam o caráter de filme-homenagem estão todos lá, só que a simpatia e o desenvolvimento (superficial, mas nunca ofensivo) tornam eles tão divertidos quanto o panteão dos titãs na fita. Charlie Hunnam é o herói Raleigh Becket que embarca na conhecida jornada do “escolhido”, ao passo que a belíssima Rinko Kikuchi emprega em sua Mako Mori um divertido estereótipo de determinação e vingança que com certeza saiu das horas em que Del Toro acompanhou animes. Ainda temos Idris Elba brincando com a figura do líder paternal e pragmático, representando o alicerce de todo o shatterdome na já icônica frase “Today, we are cancelling the Apocalypse!”. Porém, o mais curioso é que um dos maiores destaque de Círculo de Fogo vem justamente do núcleo que em qualquer outro filme (sim, a menção vai para o senso cômico sexista de Michael Bay) serviria de barriga para sustentar as duas horas de duração, falo do trio divertidíssimo encarnado por Charlie Day, Burn Gorman e o canastra Ron Perlman. A dupla nerd Newt e Gottlieb surgem como o R2-D2 e o C-3PO do universo de Del Toro e justo pelo tom caricatural trazem as piadas mais inspiradas (Newt mesmo aparece como uma provável piada interna ao dispor nos trejeitos do ator Charlie Day a mesma áurea geek frenética do cineasta J.J. Abrams). Já Ron Perlman, o verdadeiro sidekick de Del Toro, é Hannibal Chau, o chefe do mercado negro em Hong Kong que desperta simpatia e um riso incontrolável desde a sua primeira aparição.

Simples, divertido e genuíno em todo o seu tom saudosista, Círculo de Fogo vem para pincelar, com um toque infantil de devoção às suas raízes, o já firmado status de grande realizador alcançado por Guillermo Del Toro. Numa época onde a maior reclamação por parte dos espectadores vem da vergonhosa sensação de descuido que blockbusters caça-níqueis passam, encontrar uma pérola de tamanho empenho e compromisso é para reacender a sensação de deslumbre que tivemos ao ver Jurassic Park ou Exterminador do Futuro pela primeira vez. O cinema pipoca tem mais um padrinho, e nós, um selo de garantia mais imbatível do que o Gipsy Danger.

P.S.: Não deixem de ver a canastríssima cena pós-créditos, mais uma cereja de várias outras no longa.

P.S.2: O 3D do filme é tão cuidadoso em abarcar a escala da história, que mesmo advindo do processo de conversão, entrega uma profundidade adicional mais do que louvável. 
Pacific Rim 2266507460594291976

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