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Crítica | A Garota no Trem


Em Buenos Aires, no dia 19 de outubro de 2016, milhares de mulheres fizeram, debaixo de chuva, uma greve geral convocada por coletivos feministas através das redes sociais. O protesto foi motivado pelo assassinato da adolescente Lucía Pérez, de 16 anos, que foi considerado pelas autoridades locais um dos feminicídios mais brutais já registrados na Argentina. As manifestações rapidamente contagiaram a América Latina e a hashtag #NiUnaMenos viralizou na internet, atraindo simpatizantes ao redor do mundo.

Mas aí você me pergunta: o que um protesto feminista tem a ver com o filme A Garota no Trem? Assim como a greve geral em Buenos Aires, o suspense estrelado por Emily Blunt é desenvolvido a partir de uma palavra-chave: sororidade. Se você não sabe o que significa este termo, pesquise no Google, pois é um termo importantíssimo para compreender o filme em toda a sua complexidade. Uma trama que entrelaça as diferentes trajetórias de três mulheres que não fazem ideia do quanto estão conectadas e que precisam se manter unidas caso queiram concluir vivas suas respectivas jornadas. Não à toa, uma das últimas imagens finais da produção é uma escultura de um grupo de mulheres dançando de mãos dadas que remete à obra La Danse, do artista francês Henri Matisse.

Baseado no livro de Paula Hawkins, o centro da narrativa de A Garota no Trem é Rachel (Blunt). Uma mulher cujo divórcio aumentou suas dificuldades com a depressão e com a bebida. Ela divide um apartamento com a amiga Cathy (Laura Prepon), que ampara a protagonista em seus momentos de recaída. Em seu trajeto de trem, tanto na ida quanto na volta, Rachel observa de longe Scott (Luke Evans) e Megan (Haley Bennett), um jovem casal aparentemente apaixonado, e fantasia a respeito de sua vida perfeita. Entre idas e vindas, ela acaba flagrando Megan nos braços de outro homem, o que deixa Rachel, por ter divorciado por conta de um caso extraconjugal de seu ex-marido, transtornada. Certo dia, ela resolve seguir a jovem para exigir satisfações. No entanto, Rachel desmaia e acaba não se recordando de sua abordagem, o que acaba colocando-a no centro de uma investigação policial, pois Megan está desaparecida.

Não tarda para que o filme nos apresente o ponto de vista de Megan, que, como mulher casada, tem que aguentar as “típicas” pressões para engravidar o quanto antes. Insegura e paralisada com as cobranças que enfrenta de seu marido e das pessoas ao seu redor, Megan consulta-se com o terapeuta Kamal Abdic (Édgar Ramírez), com quem desabafa a respeito de sua vida e de seus segredos mais íntimos. A aproximação entre Megan e Kamal causa problemas no casamento da moça com Scott e, quando ela desaparece, o marido e o psicólogo precisam enfrentar as consequências gravíssimas da situação.

Além disso, somos apresentados à Anna (Rebecca Ferguson), que é casada com Tom (Justin Theroux), ex-marido de Rachel. Os dois têm uma filha recém-nascida e constantemente se encontram enfrentando Rachel, que os persegue e que já causou a eles muitas dores de cabeça depois que se casaram. Anna teme por sua segurança e pela de sua filha, porém Tom, em um estado de calma espantoso, assegura sua esposa de que Rachel não é perigosa. Contudo, após o desaparecimento de Megan, que é vizinha do casal e babá da filha de Anna, o casal precisará lidar com as constantes aproximações de Rachel, que se envolve intimamente na investigação do paradeiro da moça.

Como vocês podem ver, trata-se uma história bem amarrada e intrigante, que foi adaptada por Erin Cressida Wilson e que transita de forma fluída entre os pontos de vista de Rachel, Megan e Anna. O filme tem o maior cuidado em situar o espectador no vai e vem do tempo diegético e está sempre nos surpreendendo quanto à aparente obviedade da trama, mostrando que TUDO o que estamos vendo não é o que aparenta ser. Apesar disso, o filme não se salva de alguns momentos mal concebidos, como, por exemplo, a invasão de Rachel à sua antiga casa e o “quase sequestro” da filha de seu ex-marido, uma cena constrangedora por ser tão ruim. Por outro lado, há de se reconhecer que pelo menos os personagens são complexos e idiossincráticos (com exceção do Dr. Kamal Abdic, cuja unidimensionalidade é um atentado ao talento de Édgar Ramírez; da Detetive Riley, que não faz jus à escalação de Allison Janney; e de Cathy, amiga de Rachel, que sai de cena sem mais nem menos, desperdiçando a presença de Laura Prepon).

Todavia, é horrível constatar que a direção de Tate Taylor não corresponda à força da história e de seus personagens. Como se não bastasse A Garota no Trem apresentar semelhança narrativa com Garota Exemplar, Taylor parece a todo o momento tentar emular o visual e a paleta de cores do filme de David Fincher. Em compensação, o diretor realiza um bom trabalho na condução de seus atores. Luke Evans e Justin Theroux estão bons nos papeis do controlador Scott e do arrogante Tom, especialmente Theroux. Haley Bennett entrega uma atuação segura ao representar as inseguranças e os traumas de Megan, fazendo um belo contraponto à idealização da mulher perfeita por parte de Rachel. Rebecca Ferguson confirma a promessa de Missão: Impossível – Nação Secreta e realiza um trabalho excepcional ao compor Anna como uma mulher que começou como amante e que, como esposa, demonstra sinais de insatisfação com seu atual marido (reparem no momento em que, após uma relação sexual com Tom, ela diz: “Tenho saudades de quando eu era a outra”). Porém, a dona do filme é, sem sombra de dúvidas, Emily Blunt.

Atriz de talento comparável a de intérpretes como Natalie Portman, Jessica Chastain e Anne Hathaway (e que, inexplicavelmente, não usufrui do mesmo status de estrela que as mencionadas), Blunt entrega aqui uma excelente atuação, capaz de compensar até mesmo as cenas mal escritas. Rachel é uma mulher ferida por uma relação que ela não tinha consciência de que era abusiva. Como se não bastasse ser casada com um canalha e amá-lo, ela ainda teve que lidar com o fato de que foi trocada pela amante. Destruída e dependente deste relacionamento, Rachel ainda se submete a toda sorte de humilhações para chamar a atenção de seu ex-marido, e a dependência é tanta que até mesmo em seu trajeto de trem ela procura se sentar em um lugar onde possa ter uma vista privilegiada de sua antiga casa. E a interpretação de Blunt consegue captar toda a essência dos conflitos internos vividos por Rachel. A cena em que a personagem relata como teve seu marido roubado e todo o ressentimento que sente pela atual esposa deste é uma das mais fortes representações de ódio reprimido já entregues por uma atriz.

Apresentando um roteiro esforçado e respeitáveis esforços de seus atores envolvidos, e em especial uma grande atuação de Emily Blunt, A Garota no Trem poderia ter resultados ainda mais satisfatórios com uma direção mais segura e firme. Colocando de lado seus defeitos, o filme é eficiente ao apresentar sua mensagem. E em tempos nos quais o feminicídio é tratado de maneira cruelmente banal por muitas pessoas, filmes como A Garota no Trem são sempre muito bem-vindos para, ao menos, refletirmos sobre nossas próprias opiniões.

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