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[Review] The Leftovers 2x01/02/03 - Axis Mundi/A Matter of Geography/Off Ramp

Uma das experiências mais lindas (e mais assustadoras) da TV atual.


Uma das experiências mais lindas (e mais assustadoras) da TV atual.

A segunda temporada de The Leftovers tinha tudo para dar errado. Cortes na produção, uma mudança abrupta na trama e, o mais importante de tudo, o fim do material de base - uma vez que o livro original fora completamente adaptado na primeira temporada. E quem poderia me condenar por estar desconfiado? Afinal, quantas vezes uma pequena obra-prima emocional consegue criar uma sucessão à altura sem se repetir ou, ao menos, se enrolar em pretensões? Bem, se há algo que esta série sabe fazer, é deixar seu público sem palavras. Mesmo que isto signifique que tenha que calar nossa boca.

E, mais uma vez, The Leftovers atropela nosso ceticismo. Em seus três primeiros episódios, a saga dos Harvey retorna com uma intensidade não vista até os episódios finais da primeira temporada, se reafirmando como uma das séries mais elegantes, ousadas, originais, incomuns e bonitas da televisão atual. Após a lindíssima, mas inconstante temporada de estreia, a série comprova um espantoso amadurecimento, tanto no quesito visual quanto no narrativo. Mais estável e menos afetada, The Leftovers parece ter encontrado o equilíbrio certo entre seu estilo singular e seu desenvolvimento narrativo, tornando-se um pouco mais clara, mas igualmente instigante e sofisticada.

Começamos esta temporada com uma assombrosa sequência - potencialmente, um dos momentos mais lindos da série -, numa bela metáfora ou até mesmo uma bênção que explique por que a cidade de Miracle, cenário da nova temporada, foi poupada do evento que abalou o mundo. Estamos no meio do Texas, num lugar que se tornou famoso no mundo todo por não ter sofrido nenhum desaparecimento durante a Partida Repentina. Prosseguimos então para o cotidiano dos Murphy, uma família feliz então desconhecida para nós; é quase irônico observar suas conversas, suas refeições, sua convivência pacífica, tendo em vista a série de que estamos falando.

Mas não demora e as excentricidades começam a aparecer: turistas do mundo inteiro querem desvendar os mistérios de Miracle; alguns se dispõem a pagar o que for necessário para levar a água de um riacho dos arredores; outros, acampam dias fora da cidade, aguardando uma chance de entrar; e, além disso, os Murphy têm seus próprios segredos. Seria esta nova família um reflexo do que os Garvey eram antes do Arrebatamento? Em vários momentos, semelhanças surgem, exigindo que o espectador as capte e faça suas conexões. 

Seu inevitável tom soturno é muitíssimo bem estabelecido, principalmente nas mãos de Mimi Leder, que também fora responsável por algumas das melhores cenas da primeira temporada; prossegue o investimento numa fluidez visual cheia de planos trêmulos, zooms pontuais e quase imperceptíveis e jogos com a profundidade de campo, arrancando grandes performances até de atores medianos, como Chris Zylka - para não falar do resto do excelente elenco; a montagem continua a ter importante papel narrativo na exposição psicológica de seus personagens, e o trabalho da sonoplastia se demonstra mais sofisticado do que nunca, o que é comprovado pela desvairada trilha eletrônica de A Matter of Geography e pela bateria frenética de Off Ramp. Seus silêncios, quebrados por graves e cortes abruptos, são responsáveis pela criação de uma atmosfera não apenas sombria, mas introspectiva e reflexiva, deixando claro o motivo desta ser uma das séries mais intrigantes, deliciosamente ambíguas e subjetivas no ar. 

Nisto, a atração continua a investir em sua sutileza silenciosa, em suas elipses e palavras não ditas, mantendo de forma subcutânea uma ansiedade crepitante. Novamente, The Leftovers não se dedica a ser apenas uma série sobrenatural: muitíssimo bem equilibrada entre o suspense e o drama psicológicos, ao invés de voltar-se para o evento, em busca de respostas, a série de Damon Lindelof investiga o mundo e os receios dos deixados para trás. Sua calmaria enfrenta apenas alguns ocasionais lampejos de didatismo em seus diálogos e algumas metáforas que beiram à breguice, como a libertação do pássaro em Axis Mundi, que, se não for desenvolvida em algo maior ao longo da temporada, entrará para a lista de lapsos de obviedade que prejudicaram a narrativa em determinados momentos da temporada de estreia. 

O mesmo pode ser dito das crises de Kevin, que, em seu segundo ano, ainda precisam se refinar. Não que sejam desnecessárias; apesar de ser louvável que a série mostre a ansiedade nua e crua como um mal de difícil cura, ainda falta um senso de evolução - crítica que não pode ser feita para nenhum outro aspecto destes três episódios iniciais. É impressionante o quanto a série cresceu em apenas um ano, tornando-se mais ousada do que nunca. Apoiando-se no desenvolvimento da primeira temporada, o retorno de The Leftovers dá-se o luxo de adotar instantaneamente uma intensidade absurda, ao menos emocionalmente. E se, no ano anterior, a série demonstrava-se obcecada com as ideias de negação, remorso e luto, nesta nova etapa, The Leftovers se dedica à esperança. 

De fato, esperança é o tema desta temporada. Até mesmo a trilha sonora de Max Ritcher soa mais leve. Se, ano passado, encontrávamo-nos semanalmente com uma angústia sufocante, agora, vemo-nos diante de uma esperança igualmente opressora. Jill afirma, de maneira intransigente, às lágrimas, que está tudo bem, que todos estão bem. Os Garvey, num impulso, mudam-se para Miracle, custando o que custar. Laurie lava compulsivamente seu carro ao som de rock pesado, enquanto escreve o livro que acredita, sem a menor dúvida, que resolverá todos os seus problemas - e cede a alguns sorrisinhos admirados quando Tommy conta que Jill aceitou sua carta, mesmo que isto não seja verdade. Todos querem seguir em frente. Todos querem acreditar nesta esperança. Uma esperança nada fácil, enfrentando a dor de memórias e feridas ainda não cicatrizadas - mas uma esperança de, enfim, ser possível viver novamente. 

E é neste tom de esperança que a série inaugura uma nova e interessante estrutura narrativa, distinta à já interessante estrutura da temporada anterior. Permanece a divisão em núcleos e múltiplas narrativas, entra a noção de uma correlação temporal entre os diferentes núcleos e episódios que, se mantida ao longo da temporada, pode despertar a ira dos detratores quanto ao ritmo e confirmar a minha teoria de que, talvez, The Leftovers fosse mais amada num serviço de streaming, com todos os episódios lançados de uma vez. Porém, não se pode deixar de invejar a coragem com que Damon Lindelof adota esta narrativa singular e consegue extrair uma experiência única dela. É impressionante como esta série consegue soar tão visceralmente emocional em absolutamente todos os momentos e parecer essencial, de tão perfeitamente artística.

Ao final destes três episódios - um período de teste que já nos primeiros dez minutos deixou de ser apenas um período de teste -, constata-se: The Leftovers ainda é uma série ame-ou-odeie. Ainda é uma série que exige paciência e reflexão para ser devidamente apreciada - e, felizmente, ainda é uma série que permanece conosco mesmo após o fim de cada episódio. Os ganchos (e não apenas eles, é claro) comprovam: há, sim, muito material para desenvolver com folga esta temporada. 

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