[Crítica] Straight Outta Compton: A História do N.W.A.
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Na primeira metade do ano os
jornais do mundo inteiro noticiaram o estado de emergência na cidade de Baltimore,
devido aos protestos e violenta revolta popular por causa da morte de Freddie
Gray, jovem negro de 25 anos, devido a uma lesão na coluna vertebral provocada
enquanto estava sob custódia policial. Falo de algo que aconteceu em 2015. Os eventos
narrados no filme Straight Outta Compton: A História do N.W.A. ocorreram há
três décadas, e é estarrecedor notar que o nível de intolerância racial e
social não mudou.
O filme se insere no espaço
temporal entre 1986, quando O’Shea Jackson (Ice Cube), Andre Young (Dr. Dre) e
Eric Wright (Easy-E) criam o grupo de rap N.W.A.; e 1995, ano em que Easy-E
morreu vitimado pela AIDS. Antes de encabeçarem o fenômeno que agitou o hip hop
e marcou uma nação inteira, Dr. Dre (Corey Hawkins) ganhava a vida como DJ em
um clube noturno, porém, para desespero de sua mãe, não recebia o suficiente
para que pudesse sustentar sua companheira e seu filho pequeno; Ice Cube
(vivido pelo filho do próprio Cube, O’Shea Jackson Jr.) era um estudante que
vivia escrevendo rimas em seu caderno de anotações; e Easy-E (Jason Mitchell) ganhava
dinheiro como pequeno traficante, sendo, portanto, o único do grupo com
envolvimento ativo no crime. Dre e Cube já eram parceiros de composição há
algum tempo, e estavam ansiando por gravar um disco. Com isso, eles chamaram
Easy para participar do projeto, e, junto com Antoine "DJ Yella" Carraby (Neil
Brown Jr.) e Lorenzo "MC Ren" Patterson (Aldis Hodge), formam o N.W.A. As
letras fortes e a atitude dos rapazes acabam chamando a atenção do empresário
Jerry Heller (Paul Giamatti), responsável pelo início do sucesso do N.W.A. e
por boa parte dos problemas internos do grupo.
Com uma carreira composta por
filmes como Sexta-Feira Em Apuros (estrelado por Ice Cube), Até As Últimas
Consequências, A Negociação, Uma Saída de Mestre e Código de Conduta, o diretor
F. Gary Gray conduz a produção com mão firme, filmando o subúrbio com planos
bem pensados. Sua direção funciona nas sequências de shows e apresentações do
N.W.A.; nos momentos de violência, nos quais Gray se especializou em sua
carreira; e nos momentos dramáticos, especialmente no último ato do filme, em
que Easy-E descobre ser soropositivo e boa parte dos problemas entre os
personagens são resolvidos. A sequência em que os protagonistas fazem uma
apresentação-protesto da canção Fuck Tha Police impressiona pela coordenação
que a equipe teve para que aquele momento fosse tenso e impactante.
O roteiro escrito a oito mãos por
Jonathan Herman, Andrea Berloff, S. Leigh Savidge e Alan Wenkus vai além de
simplesmente abordar o gênio criativo dos artistas de Compton. O que os
roteiristas fizeram com a história do N.W.A., e que a difere das demais
cinebiografias convencionais, foi construir a narrativa enfocando um
determinado período de tempo. Mais do que isso, os responsáveis pelo roteiro
foram hábeis ao captar o espírito da época em que o N.W.A. estourou. Estamos
falando do final dos anos 1980, contexto em que os direitos civis dos negros
ainda estavam (estão?) sendo consolidados, e estes tinham que ralar em empregos
menores para ter uma qualidade de vida digna ou, no pior dos casos, apelar para
contravenções para não passar fome. Contexto em que era "comum" negros serem
detidos pela polícia somente por causa do bairro em que viviam ou pela
aparência.
Por exemplo, é só observar a
sequência em que os integrantes do grupo são reprimidos pela polícia simplesmente
porque estavam fazendo um intervalo do lado de fora de uma gravadora, evento que
motiva Ice Cube a compor, no mesmo dia, a canção "Fuck Tha Police". Era contra
esta realidade cruel e seletiva que o N.W.A. se rebelava e foi através do rap
que parte dessa população marginalizada pela elite e pelas autoridades
finalmente conseguiu ser ouvida. O único defeito do roteiro é, por ter que
dedicar tempo para contar a trajetória do N.W.A., não ir mais fundo nas
complexidades deste painel que, passados quase vinte anos do surgimento do
grupo, não mudou quase nada.
Obviamente, o filme não
funcionaria sem as performances do trio protagonista. Corey Hawkins mostra-se
competente ao representar a determinação de Dr. Dre em querer viver de música,
e não é de se espantar que alguém com seu talento se tornaria mais tarde um dos
maiores empresários de rappers dos EUA. Demonstrando que sua escalação não se
deu por motivações nepotistas, O'Shea Jackson Jr. entrega uma atuação
irretocável no papel do próprio pai. Beneficiado pela semelhança física,
Jackson Jr. consegue produzir os cacoetes e as expressões faciais de Ice Cube sem
que pareça uma imitação barata, surgindo sempre de forma natural e orgânica à
narrativa. Interpretando Easy-E com a desenvoltura de um veterano, Jason
Mitchell defende com galhardia seu primeiro papel de destaque. Uma vez que
aparece em cena como Easy-E, Mitchell não nos deixa duvidar por um segundo da
atitude com que o rapper conduziu sua vida intensa, marcada por violência,
vícios e excessos. A sequência em que Easy recebe a notícia de que é portador
do vírus da AIDS é tocante e impossível de não se emocionar. Outro que brilha
sempre que aparece em cena é Paul Giamatti. Jovem veterano do cinema, o ator
exibe a eficiência de sempre ao representar o caráter dissimulado de Jerry, sem
jamais ofuscar seus protagonistas.
Apesar da duração exagerada e de
algumas cenas que poderiam ser removidas por não contribuírem para o andamento
da narrativa, Straight Outta Compton: A História do N.W.A. não deixa de ser um
filme relevante e assustadoramente atual. Pena que não se aprofunde nas
questões sociais tão intrínsecas no contexto do surgimento do N.W.A. e que
continuam a marcar os nossos dias. Mas só de instigar a discussão e a atenção
para estas questões já é um alento.