[Crítica] Branco Sai, Preto Fica
"Sem provas, não há passado."
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"Sem provas, não há passado."
Há vários temas recorrentes no ousado e provocante Branco
Sai, Preto Fica. A frase acima, porém, talvez seja a melhor síntese da
violência física e simbólica que o segundo longa de Adirley Queirós faz questão
de retratar de forma crua e simultânea, mas não inconciliavelmente, fantasiosa.
Trabalhando com um visual esplendoroso e uma mensagem fortíssima, Branco Sai,
Preto Fica é, possivelmente, um dos mais importantes filmes já feitos sobre
segregação racial e social.
Branco Sai, Preto Fica cria suas imagens e sons a partir de
duas histórias trágicas: dois homens negros, Marquim e Shockito, moradores da
maior periferia de Brasília, ficam marcados para sempre graças a uma ação
criminosa da polícia racista e territorialista da Capital Federal. Essa polícia
invade um baile black. Tiros, correria e a consumação da tragédia: Marquim
fica para sempre na cadeira de rodas, e Shockito perde a perna após um cavalo
da polícia montada cair sobre ele. Um terceiro homem, Dimas Cravalanças, vem do
futuro colher provas da opressão social que resultou nos ferimentos dos dois
primeiros.
O filme é, acima de tudo, uma impactante
crítica social e um refinadíssimo filme político. Adirley Queirós, porém, não
se contenta em apenas expor e problematizar uma triste e infeliz realidade;
logo na cena inicial, pré-créditos, Queirós nos entrega um dos melhores
momentos do longa - quando Marquim, cadeirante, utiliza um curioso aparato
tecnológico para descer as escadas de sua casa e, logo depois, narra emocionalmente em
excruciantes detalhes os eventos da noite que mudou sua vida -, e, desde
já, lança a pergunta: afinal, Branco Sai, Preto Fica é uma ficção científica ou
um documentário? Com maestria, o filme flerta com ambos os gêneros, quebrando a
barreira invisível imposta entre os extremos ficcionais e documentais.
Marquim e Shockito não são representados por atores, mas por
eles mesmos; numa noite, em meados dos anos 1980, a polícia de fato invadiu um
baile na região da Ceilândia, e, aos gritos, acabariam batizando este longa;
somente agora, mais de trinta anos depois, podemos ouvir suas vítimas. Os
maneirismos provenientes de documentários ficam claros diante dos recorrentes
depoimentos, em forma de doloridos monólogos, e, em especial, numa cena, no
terceiro ato, em que as três tramas concorrentes se entrelaçam, esclarecendo
que os personagens são, na verdade, velhos conhecidos - cena esta belíssima
pela sua naturalidade e pela carga de memórias e perdas escondida sob a
superfície. Mas que fique claro: desde seu primeiro momento, o filme é uma
encenação. "Documendrama"? Mais que isso. Branco Sai, Preto Fica desafia
convenções de gênero, e, por isto, repito que este é possivelmente um dos mais
importantes filmes, enfatizando a sétima arte, já feitos sobre o tema
segregação.
A ficção científica se traduz na inventiva narrativa do
longa como uma distopia das mais aterrorizantes, elevando a segregação e a
repressão à máxima potência para tornar óbvio e inegável na tela o que muitos
insistem em não ver aqui, no mundo real. A Brasília de Branco Sai, Preto Fica,
provavelmente ambientada em 2014, é construída sob uma estética pós-apocalíptica
desolada, num interessante trabalho misto entre a direção de arte de Denise
Vieira, a fotografia de Leonardo Feliciano e a própria direção de Queirós, que,
em sua proposta de utilizar cenários reais, se aproxima da Alphaville de Godard - mas enquanto esta construía uma sofisticada cidade futurista com base nas
mais modernas arquiteturas de Paris, a Ceilândia de Branco Sai, Preto Fica ressalta
o abandono e a devastação, com visuais paupérrimos de uma ruína.
De fato, deve-se aplaudir os esforços da produção para construir
um mundo verdadeiramente distópico com base num orçamento limitadíssimo; as
sequências da viagem no tempo, bem como a presença da tecnologia - seja a do
ano 2014, já aparentemente mais avançada do que a nossa, seja a do ano 2073 -
são extremamente interessantes, assim como os demais elementos sci-fi. O
viajante do tempo, Dimas, serve não apenas de elemento necessário para a narrativa,
como representa a figura do entrevistador, comum de um documentário, novamente
pondo em questão a metalinguagem e a transgressão de barreiras propostas pelo
filme. A dor dos personagens (e, por consequência, das pessoas reais por trás
deles) é intrínseca a cada momento, seja nos depoimentos, teoricamente
coletados por Dimas, seja em cenas comuns da narrativa, como a sequência em que
Marquim dedica uma música aos amigos que nunca mais viu. Com toda sua crítica e
reflexão, Branco Sai, Preto Fica ainda encontra tempo para exercícios de extrema
emoção e sensibilidade.
Poderosíssimo e cheio de metáforas contundentes, Branco Sai,
Preto Fica é um filme contemplativo, sóbrio e aterrorizante. Ainda que um pouco
didático, o longa entrega uma forte e importantíssima meditação sobre repressão
e resistência, sem esquecer de traçar um interessante jogo sobre o próprio
cinema. Ao final, concluímos com tristeza e impotência que não é necessário
esperar um futuro distante para testemunhar a violência e a opressão; a
distopia já é hoje, de uma das mais horrendas formas possíveis.