[Resenha] Uma Pálida Visão dos Montes
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Uma Pálida Visão dos Montes não é um livro fácil de ser encontrado. Desde a reformulação da editora Rocco no final da década de 1990 pro início dos anos 2000, muitos livros antes publicados acabaram saindo de linha, só podendo ser adquiridos através da importação ou de sebos. Foi por acaso, com muita sorte, que encontrei um exemplar surrado, envelhecido e empoeirado no fundo de uma prateleira num sebo em Botafogo - e, se a cena parece um tanto romântica, é por que eu logo passaria a carregar este livro com carinho entre meus favoritos da literatura mundial.
Já apaixonado pela obra de Kazuo Ishiguro desde o momento em que li Não Me Abandone Jamais, já resenhado aqui, acompanhar sua estreia foi uma experiência interessante. Uma Pálida Visão dos Montes conta, de maneira curta (são pouco mais de 150 páginas), a história de Etsuko, uma mulher japonesa de meia-idade que vive sozinha na Inglaterra após a morte de dois maridos. Após o suicídio de sua filha mais velha, Etsuko recebe a visita de Niki, sua caçula, e relembra o verão em que conheceu Sachiko numa Nagasaki destruída após a Segunda Guerra Mundial.
Uma Pálida Visão dos Montes é um estonteante e impactante drama psicológico, o que é ainda mais impressionante quando se leva em consideração que, à época de sua publicação, tratava-se de um autor estreante. Em sua curta narrativa, Kazuo Ishiguro consegue mesclar os mais diversos e provocantes temas de maneira emocional e inteligente: libertação feminina, o lugar da mulher na sociedade, depressão, os efeitos da guerra, choque cultural, a mudança de valores tradicionais com a chegada da modernidade e a nova configuração da família são apenas alguns dos tópicos discutidos ao longo da belíssima história de Etsuko.
A prosa de Ishiguro já contava com a sobriedade e a beleza que o tornariam num dos maiores nomes da literatura contemporânea inglesa, e, apesar de menos detalhada e mais direta, conseguia chegar aonde queria e foi responsável por criar cenas vívidas, evocativas e, acima de tudo, tocantes, sem jamais recorrer ao sentimentalismo. Seus personagens multidimensionais são extremamente bem definidos, o que é impressionante uma vez que cada um deles constitui um reflexo de outro, ao longo da história que vai e volta entre presente e passado. Ishiguro, sobretudo, se destaca por criar mulheres incríveis, fugindo de qualquer estereotipo e caracterizando-as como pessoas realistas, de personalidades seguras e constantes. De tão bem construídas, é fácil imaginar Etsuko e Sachiko como mulheres reais, especialmente a primeira, cuja visão, exposta na narrativa em primeira pessoa, é essencial para compreender as mudanças éticas e culturais vigentes na década de 1950 e novamente na década de 1980.
Os personagens habitam as páginas de Uma Pálida Visão dos Montes como em um espelho, em que nenhum ato se dá sem razão e cada detalhe se reflete em outro acontecimento, unindo firmemente o passado e o presente, um encarando ao outro na superfície do vidro. Essa belíssima história, guiada pelo estudo de personagens, não necessita de grandes impactos para emocionar. A beleza está na calmaria tensa e no silêncio sufocante, e Kazuo Ishiguro demonstra, mais uma vez, com maestria, que um livro se escreve com muito mais do que apenas palavras.