[Crítica] Beasts of No Nation
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“Ela acha que eu não falo porque não sei me explicar como menino, mas
não sou um menino. Sou como um adulto e ela é como uma garotinha porque eu luto
na guerra e ela nem sabe o que é guerra.”
“Vi e fiz coisas terríveis. Então se eu for contar pra você, isso vai
deixar nós dois tristes. Nesta vida, só queria ser feliz nessa vida. Se eu
contar tudo, você vai achar que eu sou um animal ou o demônio. Sou tudo isso,
mas também já tive uma mãe, pai, irmão e irmã.
Eles me amavam.”
Eles me amavam.”
Estes dois monólogos do
protagonista de Beasts of No Nation revela
não só seu trágico percurso ao longo do filme, mas representa também a
realidade de todas aquelas "crianças-soldados" na África que foram tiradas de
suas famílias e tiveram a infância extirpada para serem transformadas nos
combatentes que boa parte da mídia e um sem número de moralistas adoram
demonizar. Assim sendo, o filme é uma impiedosa jornada pela perversão humana,
capaz de corromper o que há de mais puro e imaculado dentro de cada um de nós.
Somos apresentados a Agu (Abraham
Attah), um menino habitante de um país africano não identificado em meio a uma
guerra civil. Devido ao conflito, as escolas fecharam e as crianças procuravam
formas de se manterem ocupadas, seja brincando, seja ajudando a família nos serviços
domésticos. Até que tropas nacionalistas chegam a sua cidade e uma série de
eventos separa Agu de sua família. Com isso, ele acaba recrutado pelas milícias
rebeldes, se juntando a um batalhão liderado por um homem conhecido apenas como
Comandante (Idris Elba). Submetido ao brutal treinamento das forças
guerrilheiras, Agu se vê forçado a passar por situações que o testam
constantemente.
Beasts of No Nation é o
primeiro filme com distribuição da Netflix. E, mais uma vez, o serviço de
streaming entrega para o público uma produção de qualidade invejável, sem
contar que foi produzido com um orçamento enxuto (de aproximadamente seis
milhões de dólares!). Créditos para o cineasta Cary Joji Fukunaga, que já tem
em seu currículo dois filmes (Sin Nombre e Jane Eyre) e aclamação universal
pela brilhante direção da primeira temporada da série True Detective. Utilizando
praticamente a mesma estratégia de Fernando Meirelles em Cidade de Deus,
Fukunaga escala um elenco composto em sua maioria por rostos desconhecidos
(sendo Idris Elba o único conhecido), e o resultado é um filme bastante
realista e autêntico.
Tendo escrito também o roteiro de
Beasts of No Nation (além de assinar
a direção de fotografia do filme), o cineasta não está interessado em observar os
conflitos armados na África por um viés antropológico. Pelo contrário, ele
examina a condição humana sendo colocada à prova em uma situação-limite. Neste
caso, o diretor utiliza a vida de um garoto que perde sua inocência ao ser
transformado em soldado para que o público testemunhe a natureza vil e
destruidora da guerra, que devasta vidas em ambos os lados combatentes. Há um
forte elemento religioso presente na vida de Agu, oriundo de família cristã,
que está sempre questionando Deus em relação às suas próprias atitudes
hediondas ao longo da projeção, como se estivesse desesperado por estar
perdendo a noção entre o certo e o errado. Destaque para a música de Dan Romer,
que cria uma atmosfera melancólica e pontua brilhantemente a narrativa,
chegando a ser hipnótica pelo efeito que provoca.
Sem nenhuma experiência anterior
em atuação, o estreante Abraham Attah entrega uma performance madura e eficaz
como o menino Agu. O jovem ator consegue exprimir uma série de emoções apenas
através de seu olhar deslocado e confuso. Sua expressão infantil do começo do
filme muda ao longo da narrativa e o garoto é bem sucedido em nos convencer da
brutal transformação de Agu. Por sua vez, Idris Elba exibe a habitual
competência no papel do Comandante, um líder carismático e intimidador ao mesmo
tempo, que usa do discurso patriarcal para falar com seu batalhão, tratando seus
comandados como se fossem a única família que tem. O Comandante é um homem da
guerra, e o combate é o ambiente onde ele se sente à vontade. Isto fica claro na
cena em que se encontra com o supremo líder da força que integra. Quando o
Comandante fica sabendo que receberá uma promoção e será afastado de seu
batalhão, ele reage como se estivesse sendo gravemente ofendido, chegando a
romper relações com o supremo líder. A atuação de Elba é genuína e sua presença
em cena é nada menos do que magnética.
Com uma duração aproximada de 136
minutos, Beasts of No Nation, além
de representar o início de um promissor novo capítulo na história da Netflix e
da distribuição cinematográfica como um todo, é um dos melhores filmes do ano.
Brutal, ousado e marcante, o filme é um magnífico acerto na carreira de Cary
Joji Fukunaga, um dos melhores diretores jovens em atividade. Mal posso esperar
pelos próximos filmes do cineasta e da própria Netflix!


