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[Crítica] Trapaça


A cada novo comentário que leio envolvendo premiações cinematográficas e as produções nelas presentes, mais reflexões a respeito das expectativas prévias e atenção exagerada despertadas por estas povoam minha mente. Existem diversos pontos atingidos por isto, desde a maior cobrança do público pela qualidade destas produções simplesmente por estas estarem nomeadas, até a exaltação de obras medíocres, pelo mesmo motivo - falta a este público o conhecimento de que premiações não são sinônimos de justiça. É difícil evitar estas expectativas prévias por estes motivos, é verdade, mas com o ganho de experiência cinéfila, isto acaba acontecendo. Em seu novo trabalho, justamente um diretor usualmente superestimado pelas premiações, David O.Russell foi vítima de um caso bastante peculiar relacionado a este ponto em seu novo projeto: apesar de ser uma produção extremamente bem recebida por crítica e público, tem sido vítima de algumas detratações por sua falta de originalidade e semelhanças com o estilo de Martin Scorsese. Oras, mas diversos filmes sem qualquer traço de originalidade - com clara cópia do estilo de diretores consagrados e cuja qualidade é muito menor do que a deste aqui abordado - são lançados anualmente e o público trata-os com muito menos rigor. A diferença, no entanto, reside no simples fato de Trapaça estar recebendo atenção nas premiações, e isto é uma denúncia clara destas expectativas levantadas no início do texto.

Deixando a leveza de seu projeto anterior, O Lado Bom da Vida, para trás, o cineasta infiltra-se no submundo dos golpes, máfia e corrupção para narrar a trajetória do trapaceiro Irving Rosenfeld (Christian Bale, de Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge), um aplicador de golpes pequenos desde a adolescência, cujos negócios crescem exorbitantemente quando este se envolve com a sedutora enganadora Sydney Prosser (Amy Adams, de Ela) - ou Edith, nome falso adotado. Prometendo empréstimos e aplicando golpes em escalas cada vez maiores, o casal acaba atraindo a atenção do FBI, através do agente Richie DiMaso (Bradley Cooper, de O Lugar Onde Tudo Termina), que após pegá-los em flagrante sem muitos esforços, propõe que a dupla o ajude a encontrar outros envolvidos em crimes deste tipo, em troca de sua liberdade. Assim, a operação se inicia e um de seus principais investigados será o político Carmine Polito (Jeremy Renner, de João e Maria: Caçadores de Bruxas), mas a conclusão das investigações não virá tão facilmente com o envolvimento de outros elementos conflituosos no caso, sejam as desavenças entre o trio responsável pela tarefa, a chegada da imprevisível esposa de Irving, Rosalyn (Jennifer Lawrence, de Jogos Vorazes: Em Chamas), as imensas brechas existentes naquela farsa ou o envolvimento da máfia para tornar tudo mais perigoso. Tudo isto, no clássico norte-americano período final da década de 1970.

Basta uma breve observação para notar que a trama não é uma grande novidade, abordando a velha relação entre criminosos e a instituição da lei com um objetivo em comum, a presença da máfia e o cenário setentista, entre outros pontos responsáveis por nos remeterem a clássicas obras cinematográficas de máfia, policiais e, consequentemente, algumas de Martin Scorsese. A atmosfera empregada pela produção assemelha-se, em alguns pontos, com o Cinema do grande diretor - a sujeira do submundo do crime, onde não há inocência e todos buscam seus interesses, as múltiplas narrações em off e até a sequência do porta-malas, são alguns dos elementos responsáveis por comprovar isto -, mas não consegui associá-las diretamente a um demérito, se aproximando mais de uma espécie de homenagem, onde emprega elementos  do estilo de um outro cineasta na condução de sua narrativa autêntica e particular, o que não é problema algum e somente deixa mais clara a influência exercida pelo diretor de Os Bons Companheiros na geração contemporânea da sétima Arte.

Contudo, isto depõe a favor de uma contundente crítica direcionada a David O.Russell: sua falta de originalidade, em alguns aspectos. O diretor, claramente, não considera uma prioridade que suas tramas contenham grandes elementos de novo, tendendo ao clichê, ao previsível, mas ele prefere deixá-la, por muitas vezes, em segundo plano, priorizando a criação e desenvolvimento de personagens interessantes, complexos, que permitam-nos continuarmos interessados e instigados por aquela história, esquecendo até sua previsibilidade, e nos trabalhos do elenco responsável por compô-los. Houve oportunidades em que sua fórmula falhou - como em Três Reis e no já citado O Lado Bom da Vida -, mas também houveram aquelas em que ela funcionou, e Trapaça se junta a O Vencedor neste segundo grupo - superando-o, inclusive.

Desta estrutura básica destacada acima, surgem alguns dos deméritos da fita, uma vez que, desde a primeira vez que estes se encontram, não é tarefa difícil prever uma relação amorosa entre Sidney e Richie - ainda que esta se revele mais uma farsa -, e menos difícil ainda é notar, no olhar de Irving a Carmine, quando o prefeito discursa louvando os investimentos do golpista disfarçado, uma denúncia de que aquele criara laços reais de amizade com este, e não conseguiria mais prejudicá-lo como pretendia. Por tamanho empenho e vigor no trabalho com seu elenco, que algumas vezes acaba levando a intensidade desejada a um nível de exagero (numa entrevista recente, Bale declarou que Russell gosta de repetir incontáveis vezes a tomada, para levar o ator a seus níveis mais intensos), o diretor acabou alcançando, nesta parceria com Jennifer Lawrence, um verdadeiro culto a este exagero - apesar de a personagem ser divertida, a composição empregada pela jovem atriz acaba beirando o overacting, especialmente na composição vocal anasalada, soando artificial -, um dos prováveis responsáveis por chamar ainda mais atenção a atriz nas premiações.

Ambiguamente, esta mesma estrutura é responsável por entregar ao público as melhores coisas de Trapaça, e elas predominam com boa vantagem. Se a trama segue alguns traços de previsibilidade, as personagens representam o extremo e conseguem garantir a tensão ao espectador, graças ao simples fato de nunca podermos prever com clareza qual será o próximo passo de cada um ali - os cinco protagonistas contam com uma característica importantíssima em comum, sendo esta sua grande ambição e muito pouco a perder. Todas as personagens são humanas, sujeitas a erros e atitudes inconsequentes, e motivadas acima de tudo por objetivos de um sistema onde cada um luta por seus interesses. Graças a isto, determinadas sequências ganham um clima explosivo, especialmente aquela da festa pela chegada do xeque, onde as atitudes de Rosalyn quase colocam tudo a perder e os diálogos trocados com o temido Victor Tellegio (Robert De Niro, de Ajuste de Contas, numa ponta sensacional) - repare numa sequência onde a câmera se afasta do mafioso, engrandecendo-o e revelando sua imponência sem maiores explicações - são capazes de inverter situações da operação em frações de segundo. Neste mundo fascinante, perdões são conquistados através do sexo, mentiras povoam as conversas mais casuais e a confiança só existe até que um interesse pessoal a supere - um mundo já conhecido, mas que não perde esta característica.

O elenco sustenta toda esta imprevisibilidade com segurança admirável, mesmo enfrentando sequências de grande intensidade emocional. Amy Adams constrói sua Sydney como alguém em quem jamais podemos confiar, mas não conseguimos nos afastar, abusando da sensualidade e da autoconfiança; Bradley Cooper acerta ao aumentar as doses de bom humor conforme as ambições de seu Richie crescem; Jeremy Renner está acertadamente contido na construção de Carmine, eficiente ao gerar no espectador os sentimentos ambíguos de apoiar seu personagem por suas boas intenções e condená-lo por suas atitudes corruptas; e Jennifer Lawrence, apesar de pecar nos exageros já comentados, também oferece uma performance competente em sua proposta cômica. Sem dúvidas, o trabalho mais fascinante da obra reside em Christian Bale, dono também do personagem mais instigante, com seu Irving. O ator claramente emula Robert De Niro em sua composição, e o faz com excelência, desde a gesticulação - mais presente quando está performando uma enganação - até a composição vocal, uma decisão ainda mais acertada considerando que seu personagem é um tipo dotado de características marcantes em personagens clássicos do ator consagrado - a atitude possessiva com suas mulheres, os extremos momentos de calma e exaltação, etc -, mas o trabalho funciona excelentemente como mérito particular do ator.

Entregando o necessário para este trabalho excelente de seu intérprete, Irving Rosenfeld é o ponto mais fascinante da fita. A trajetória de ascenção e queda é ilusória, e justamente por isto mais interessante. Se, no início da trama principal, este se vê no controle geral da situação - da operação, de sua esposa, sua amante e da relação com Carmine -, durante o desenrolar desta, vemos este deixando a liderança simbólica da investigação, perdendo sua amante - ambas as perdas são para Richie -, sua esposa intervindo em sua vida e, por fim, o conflito com Carmine, aparentemente seu único verdadeiro amigo. Para representar tudo isto em sua personalidade, conforme a evolução da trama, o personagem deixa de lado a falastronice inicial e torna-se calado e observador. (Também é interessante observar como todas estas mudanças, se invertidas, representam mais ou menos o que acontece com Richie). É o que vemos, sim, mas após as resoluções pelo terceiro ato apresentadas, percebemos que Irving, na verdade, jamais deixou o controle de tudo aquilo - ao lado de Sydney, a quem também nunca perdeu -, e seu golpe continuava agindo, silenciosamente, porém com muito maior intensidade. Tudo não passava de seu grande truque, e mesmo com algumas perdas - a amizade com Carmine é claramente a mais significativa -, aquilo entregou-o tudo o que ele poderia desejar, todo o sonho americano, tratando-se de vencer e derrubar seu oponente - representado por Richie, um homem de grandes ambições em seu emprego, mas que, com a mesma rapidez que conquistou-os, perdeu-os, tendo sua história, assim como naquela contada por seu chefe, jamais finalizada da forma como ele desejava.

Para levar-nos integralmente a esta América de sonhos egoístas, Trapaça adota uma ambientação visual extremamente eficiente, cujos figurinos e penteados chamativos representam superficialmente o poder de cada um. A fotografia adota um tom de iluminação mais claro para a narração da trama presente - no grande flashback passado, responsável por narrar as origens do casal, esta adota tons quase de sépia -, enquanto a trilha sonora é marcante e cresce conforme a tensão dos eventos narrados também se eleva, tensão mantida com essencial ajuda da ótima montagem de Alan Baumgarten, Jay Cassidy e Crispin Struthers, capaz de imprimir um ritmo jamais cansativo à narrativa, mesmo passando por flashbacks e uma grande quantidade de conflitos secundários sendo alçados. Tecnicamente, então, a obra exibe competência ao mesmo alto nível.

Considerando o que nos foi apresentado por Trapaça, podemos traçar uma relação entre o Cinema de David O.Russell e a sequência inicial da fita (na qual Irving coloca próteses capilares imediatas e outros artifícios visuais falsos para incrementar sua aparência): numa visão de cima, superficial, temos alguém com elementos copiados e reaproveitados, mas, num conhecimento mais aprofundado, este alguém apresenta uma personalidade tão forte e envolvente, que é capaz de nos envolver, cativar e instigar.
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