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[Crítica] Ela


O fascínio do ser humano em conhecer sua própria realidade de maneiras diferentes é algo impressionante. Vez ou outra, determinadas obras recebem o fardo de serem representações alegóricas desta crua realidade, quando pouco entregam além da simples realidade, corriqueira e habitual, que estamos acostumados a ver cotidianamente. Mas, nestas oportunidades, não estamos hipnotizados por um mar de adjetivos positivos vistos previamente sobre esta obra, e que poderão facilmente tornarem-se ofensivos e voltarem-se contra nós caso ousemos discordar da opinião pré-estabelecida.

A abordagem deste discurso provavelmente comete vários erros e generaliza afirmações levianas, mas não sou capaz, de forma alguma, de ignorar sua relação com o longa do qual aqui tratamos, nomeado Ela. Propondo-se a narrar uma fase melancólica e conturbada da vida de Theodore (Joaquin Phoenix, de O Mestre), um escritor de cartas digitais e habitante de um futuro digno de fábulas - embora com marcantes traços realistas -, melancólico homem que emprega todo o seu sentimento nas cartas sentimentais cuja responsabilidade é escrever, mas acaba sofrendo com a solidão na qual se enterrou desde sua separação da esposa, Catherine (Rooney Mara, de Terapia de Risco), e atualmente passa seus dias após o trabalho convivendo com máquinas em sua própria solidão, com a qual aparentemente acomodou-se. Quando um sistema operacional é instalado nos aparelhos eletrônicos da população - surpreende-me que tenha demorado tanto -, Theodore acaba inesperadamente envolvendo-se cada vez mais com a personalidade feminina daquele que ganha, chamada Samantha (dublada por Scarlett Johansson, de Os Vingadores), no aparente único relacionamento que tem a capacidade de satisfazê-lo emocionalmente, embora as inibições físicas atrapalhem-no e, em seu desenrolar, o apaixonado homem descubra que, no final das contas, todo relacionamento traga sua porção de prejuízos.

Definitivamente, o cineasta Spike Jonze (Onde Vivem os Monstros) apresenta admirável habilidade na criação e apresentação inicial de seu melancólico e sensível universo, tanto visualmente quanto com relação ao seu conteúdo, revelando todo o potencial ali existente para ser explorado. O ambiente de trabalho do protagonista é um dos elementos mais interessantes desta visão, apresentando de forma eficiente a frigidez para qual nossa sociedade caminha, utilizando-se de serviços terceirizados e tecnologia até para o mais sentimental dos meios de comunicação; considerando que a fita divide-se predominantemente entre este espaço e a casa de Theo, é curioso observar como a residência não difere-se muito do que poderíamos imaginar, contando com a alta presença tecnológica, recurso de ocupação do tempo para um homem comum e solitário. Não é um exercício implausível imaginar este universo encaixando-se no nosso, com diferenças claras apenas por seu maior desenvolvimento tecnológico.

O personagem de Joaquin Phoenix é um reflexo claro deste mundo, pois retrata um homem solitário e com aparente pouco tato para as relações humanas, mas que em nenhum momento deixa de necessitar de um dos sentimentos mais instintivos do ser humano - o amor -, nem que precise buscá-lo num equipamento tecnológico, que poderia oferecê-lo os sentimentos sem os julgamentos e conflitos de um outro ser humano membro desta sociedade, aparentemente. A relação, contrariando as expectativas de Theo, apresenta todos os conflitos que poderíamos esperar de uma relação entre duas pessoas, o que, apesar de ser admiravelmente verossímil, também significa uma abordagem sem nada de inovador - com a exceção de uma das partes da relação ser uma máquina - dentro da Arte, logo interessando menos ao espectador, acostumado a ver todas aquelas indas e vindas, brigas por ciúmes, conflitos de sentimentos e etc, em produções genéricas e menos reconhecidas do que esta - merecidamente, é claro, não me entendam mal -, mas sem um elemento para soar como novidade e atrai-los para uma visão a mais.

Também é triste observar como Spike Jonze enfrentou problemas na exploração de seu próprio universo; apesar de apresentar todos os elementos, já citados, para imergir o público em seu universo e instigá-lo a continuar ali, Ela concentra-se apenas nesta relação moderadamente interessante entre o protagonista e Samantha, e esquecendo-se de outros elementos muito mais interessantes de seu mundo - incluo aí o local onde Theo trabalha, e a opção por jamais mostrar os debates nos quais Samantha se envolve -, além de inferir que a população conhece muito pouco sobre seus próprios recursos - como o protagonista demorou tanto a cogitar que sua amada também era a personalidade no sistema operacional de outras pessoas, algo tão óbvio? -, inserir um ou outro momento de falta de foco - havia necessidade para o alívio cômico dentro do video game? -, e apostar em planos com apelo visual, mas definitivamente batidos, onde insere o protagonista vivendo seus sentimentos em diversas paisagens diferentes.

Claro, devemos valorizar uma narrativa romântica cuja proposta também é mostrar com sinceridade as confusões psicológicas que a chegada de um sentimento como o amor pode causar a alguém, seja em decisões do roteiro - antes afastado de todos, Theo mostra-se mais aberto e volta a conviver com alguns de seus amigos assim que envolve-se com Samantha -, como também numa inteligente composição da direção de arte e figurinos - em sua casa, dominada por cores mais frias, o escritor costuma usar roupas também de cores mais frias, enquanto no trabalho, composto por cores vivas, prefere também utilizar cores vivas, o que eficientemente demonstra sua tentativa em adaptar-se aos ambientes. No elenco, temos escolhas irrefutáveis, sobretudo com Joaquin Phoenix, responsável por compor seu Theo com admirável sensibilidade e provocar empatia imediata no espectador, e o trabalho vocal de Scarlett Johansson, tornando sua Samantha inicialmente apaixonante e apostando acertadamente numa composição mais descontraída, mesmo quando a personagem vive seus momentos mais possessivos, próximos ao final da projeção.

Resta, ao espectador, nutrir os sentimentos mais otimistas por Theo em suas futuras relações, e desejar que, nestas, possa surgir algo de mais interessante e arriscado do que nesta vivida com Samantha, tão bela e instigante se vista superficialmente, mas monótona, apesar de cheia de sentimentos sendo lançados, quando acompanhada de perto. Talvez, o grande fascínio da sociedade atual na Arte, seja mesmo ver sua própria e mais simples representação com algum elemento de novo para torná-la menos monótona.

Oscar 2014 6409889929430973483

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