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[Resenha] Sangue Quente

Ganha pontos pelo carisma.


Ganha pontos pelo carisma.

Não é de hoje que Sangue Quente causa estranheza no público geral. Em tempos pós-Crepúsculo, qualquer sinal de um possível "sucessor" causa alarde (desnecessário, por sinal). Quando anunciada a adaptação cinematográfica (que, mais uma vez, deu as caras no Brasil com o vergonhoso título de Meu Namorado É Um Zumbi), houve mobilização geral contra o conteúdo "ofensivo" em relação à mitologia zumbi... mesmo que os envolvidos não tivessem lido o livro, afinal.

A história já é conhecida: os humanos sobreviventes se refugiaram dentro de estádios de futebol. R, o zumbi propriamente dito, está insatisfeito com sua vida (?) de inércia e os dias repetitivos num aeroporto dominado por zumbis. Um dia, num ataque a um grupo de exploradores, mata o namorado de Julie, e se apaixona por ela. A premissa pode parecer bem chula, mas a história em si não é tão simples assim. Em sua obra, Isaac Marion procura criar toda uma mitologia para manter as coisas funcionando com pelo menos o mínimo de sentido - e, no processo, cria um mundo fascinante e uma reflexão interessante sobre o nosso próprio.

Os zumbis não são criaturas tão mortas assim. Quer dizer, claro, estão mortas, mas, considerando que o cérebro é a única coisa que ainda funciona, eles conseguem manter alguns pensamentos fracos e algum controle sobre o próprio corpo - ou seja, em três horas ou mais conseguem realizar alguma ação pertinente. Vivendo em sociedade, "criaram" regras - na verdade, foram criadas sozinhas sem o consentimento de ninguém, como muitas vezes acontece no nosso próprio cotidiano -, tais como o "casamento" (um ritual estranho cheio de grunhidos), a "família" (eles adotam pequenas crianças zumbis) e o "sexo" (basicamente, como não têm corrente sanguínea para permitir o ato em si, eles só tiram as roupas e ficam se batendo por horas). Existem também os Ossudos - zumbis que tiveram toda a carne decomposta e se tornaram basicamente... ossos! Eles são rápidos e poderosos, muito mais mortíferos do que zumbis normais, e ditam as regras nessa pequena sociedade, controlando-a com punhos de aço.

R, no caso, é um zumbi que gosta de subir e descer as escadas rolantes do aeroporto. Ele também coleciona objetos de suas vítimas, e pensa no que seria vida, em como poderia se libertar. Num ataque, decide comer o cérebro do humano Perry (aparentemente, o cérebro é a melhor parte, uma vez que permite ao zumbi viver as memórias da vítima e se sentir vivo novamente), e, nesse processo, se apaixona pela namorada dele, e decide salvá-la. A partir de então, começa uma história de não simplesmente romance, mas superação e filosofia.

A paixão por Julie, inédita no mundo zumbi, começa a fazer R se sentir humano novamente; a recuperar a capacidade da fala; a voltar a andar normalmente. Isto se estende aos outros zumbis, que começam a ver em R um exemplo de que podem mudar de vida. Mas não é algo tão preto no branco: tendo consumido o cérebro de Perry, R consegue suas memórias mais longínquas. O momento em que ele conheceu Julie, quando o apocalipse zumbi estava apenas começando; seus sonhos grandes e suas esperanças de ver o mundo voltar ao normal; a destruição desses sonhos, e a transformação de sua própria personalidade em algo triste e desesperançoso. Perry é o reflexo de uma vida desperdiçada, em que a crueldade do mundo esmagou os sonhos. Perry já havia morrido por dentro há muito tempo - como a própria Julie disse, estava aliviada que ele tenha conseguido encontrar a paz. Perry é uma pessoa que não conseguiu mudar, e é ele que inspira R a fazê-lo.

Esta é a mensagem mais forte do livro: a capacidade que temos de mudar e alcançar nossos sonhos. Isto se torna visível na divisão do livro em três partes: "querer", "atacar" e "viver", mostrando os três momentos da mudança de R. Mesmo que haja uma sociedade inteira nos reprimindo - representada aqui pelos Ossudos - e o preconceito dos outros - representada pelos humanos aterrorizados e impulsivos ao matar zumbis, sem antes entender a lógica deles -, nós podemos mudar. Podemos ter a vida que queremos. Paralelo a isso, temos ainda as reflexões de Julie, uma jovem que ainda sonha, ainda tem esperança, e que está disposta a acreditar na mudança.

O ponto forte de Sangue Quente é a fuga à pieguice, uma vez que não só constrói uma mensagem fortíssima com louvor, mas também introduz elementos de sátira e comédia já explicitados acima. Várias passagens satirizam este mundo zumbi, bem como a fisionomia do mesmo. Julie é um espetáculo à parte. Ela não é a típica mocinha de um romance adolescente. Bebe, fuma, se droga, é desbocada e foge a qualquer romantismo, garantindo momentos divertidos quando contraposto ao típico modelo de protagonista fraca e reprimida.

A maior fraqueza, entretanto, está no amadorismo de Isaac Marion quanto à escrita. O autor não amadurece a escrita, muitas vezes causando cacofonia e atrapalhando o desenrolar da história e das próprias reflexões. No plano das ideias, Marion foi criativo e inovador. Mas a narração em si se perde muitas vezes por maneirismos feios, que irão certamente incomodar o leitor mais exigente.

Carismático e inteligente, Sangue Quente é um livro divertido, engraçado e até mesmo comovente. Cheio de referências à cultura popular, à música e livros que também quebraram paradigmas sociais, é o tipo de literatura que te deixa com um sorriso na cara desde a primeira página.

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