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[Crítica] Faroeste Caboclo


Assumir a responsabilidade de conduzir a adaptação de uma canção como Faroeste Caboclo foi um risco desde o início, e a interessante atitude de René Sampaio ao assumi-la, dirigindo-a logo em sua estreia nos longas-metragens, mostra como a esperança que podemos ter em diretores estreantes como Sampaio, que diferentemente do caminho comercial que poderia seguir em sua estreia, prefere dirigir com ousadia e sobriedade uma adaptação complexa como é Faroeste Caboclo.

Tratar da adaptação de uma canção não é algo tão habitual quanto as adaptações literárias de best-sellers que presenciamos aos montes todos os anos, adaptar uma canção requisitará - na maioria dos casos - um maior esforço criativo da equipe que o roteirizará, ao ter que criar mais elementos novos e expandir os já existentes na canção para criar todo o roteiro de um longa-metragem, mas o caso de Faroeste Caboclo é diferente. A excelente canção composta por Renato Russo já é tão complexa e cheia de histórias, que a equipe composta por Marcos Bernstein, José de Carvalho e Victor Atherino, junto ao diretor René Sampaio, poderia cair em dois caminhos que dificultariam bastante seu trabalho: Ou aquele que tornaria a adaptação desnecessária por somente seguir o caminho comum ao somente encenar os fatos apresentados na música ou então o de ousar demais e mudar completamente os rumos e elementos da canção, o que talvez a levaria a infelicidade de cair no desgosto do público, visto que a base de fãs de Legião Urbana é fiel e muito grande. O segredo era encontrar um equilíbrio entre os fatos apresentados na música e o acréscimo para torná-la mais cinematográfica, e é notável observar que Faroeste Caboclo encontrou com excelência este equilíbrio.

Iniciando sua narrativa com breves cenas para mostrar um pouco da infância de João de Santo Cristo (Fabrício Boliveira) e que claramente motivam sua personalidade como ela é durante os eventos que o longa narrará. Já na vida adulta, sem rumo e após a morte de sua mãe, João parte para Brasília em busca de um parente distante, Pablo, que o receberá e acabará levando-o a seu destino, pois Pablo é um traficante de drogas e isso leva João a trabalhar na área da ilegalidade também, que quando está traficando numa área habitada por membros mais ricos da sociedade brasiliense acaba sendo perseguido pelos policiais corrompidos que trabalham para Jeremias (Felipe Abib), sim, ele mesmo, e indo pelo destino ao encontro de Maria Lúcia (Isís Valverde) na fuga, uma jovem bela e conflituosa que logo se atrai pelo tal Santo Cristo. Não acredito que valha a pena traduzir os eventos que o longa toma após esta sua base principal, pela qual eles se motivarão, pois além da canção de mesmo nome servir como uma base para tomar conhecimento dos mesmos, a experiência de experimentar a surpresa das mudanças do roteiro em relação a esta - algumas sutis, outras mais significativas - é sem dúvida bem-vinda a todo o público que presenciar sua versão cinematográfica.

Inegável realidade é a de que uma simples adaptação da dita canção já serviria no mínimo como apelo de curiosidade, pelo potencial da mesma, mas há elementos ali que ficariam gratos com sóbrias mudanças para as telonas, e por isso há uma grande importância em lembrar novamente que estas mudanças jamais deveriam ser vistas como negativas se bem feitas, e aqui elas foram sim muito bem feitas, como as próprias circunstâncias do encontro com Maria Lúcia, que tornaram o romance entre os dois como algo mais destinado e originado de um acaso, o que o torna mais simples. E este mesmo roteiro sabe transpor toda a crítica que se fazia presente já na canção, em sua época, e que são completamente válidas até a atualidade, como o domínio do tráfico sobre as autoridades e o preconceito constantemente vivido por João de Santo Cristo, que traz mudanças aos poucos nesta realidade, ou ao menos no pedaço desta em que vive. A crítica vai se construindo com naturalidade e dependência da interpretação do público.

Enquanto isto, a direção de Arte de Tiago Marques Teixeira é muito competente em transitar nos cenários urbanos na Brasília retratada no longa e os cenários rurais da mesma região, fazendo-nos sentir dentro de sua época, e que ganham com a força da direção de Sampaio para reforçar o domínio de seus protagonistas sobre cada uma destas áreas, com a imponência que João vai ganhando aos poucos na cidade, antes de certa forma desconfortável com a região que tinha mais imponência de seu oponente, Jeremias, ao contrário de quando os conflitos passam para as áreas rurais, em que João tem uma capacidade muito maior de se impor em todos os conflitos. E é igualmente interessante observar como o clima de Faroeste Caboclo passa por variações conforme a situação de seu conflito, e neste caso o principal destaque são os tons tomados por sua fotografia, que se mantém mais clara representando a maior pacificação dos dois primeiros atos, quando há conflitos, mas o principal foco ainda se dá pelo romance entre João de Santo Cristo e Maria Lúcia, e sua maior obscuridade quando o mesmo João se dá tomado pela fúria na busca por sua amada e a revolta com Jeremias, que rendem cenas secas dignas de grandes faroestes modernos - como o próprio confronto já conhecido do desfecho. A trilha sonora, mesmo quando tomada por seus excessos, me agrada muito, justamente por eu gostar da música em constante sinal de alerta pela tensão vivida ali.

Contando com personagens em constante conflito e fúria, as interpretações de Fabrício Boliveira e Felipe Abib para os seus João de Santo Cristo e Jeremias são fundamentais para se estabelecer que nenhum deles conta com um caráter completamente limpo, é uma realidade em que não há heróis, mas enquanto João tem sim sua dignidade na busca por seu amor, mesmo quando precisa tomar atitudes cruéis, Jeremias prefere corromper agentes da lei e tomar ações marginais contra seu oponente, com uma força de caráter muito menor do que a do batalhador João, e por isto a abordagem do longa toma por vezes partido na decisão do público de uma certa torcida pelo protagonista, mas isso não passa de uma sutileza de erro que pode ser contornada. Isís Valverde também surge muito bem no papel de sua Maria Lúcia, ainda que sua participação pudesse abranger algumas cenas mais, e Antônio Calloni merece destaque na construção do cruel Marco Aurélio, principal vilão entre as personagens do longa, ao lado de Jeremias.

A já mencionada direção sóbria de René Sampaio é merecedora da esperança cinéfila por poder presenciar uma carreira muito promissora surgindo, que constrói com sua ousadia um longa que, se fôssemos aqui tratar biologicamente, teceria uma relação de proto cooperação com a canção na qual se baseia, mas artisticamente, vai muito além de mais uma prova da relação harmônica que diferentes Artes podem tecer, especialmente quando uma é a apaixonante sétima delas, uma bela prova. E será inevitável e interessante observar mais uma vez isto ao presenciar os créditos finais de Faroeste Caboclo, ao som de Faroeste Caboclo.
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